A adoção do sistema de recuperação pela legislação brasileira, de certa forma, representa um retorno às origens corporativas, onde a superação da crise financeira deve emergir de um consenso entre interessados – credores e devedores -, no interesse da manutenção da estabilidade do mercado e da continuidade das unidades produtivas.
Na dinâmica do processo de recuperação o devedor se encarrega de apresentar as estratégias de cumprimento das obrigações pelo Plano de Recuperação Judicial, aprovado pelos credores em Assembleia. O resultado não tem que obrigatoriamente decorrer do consenso, mas de solução decorrente de negociações entre interessados, cuja natureza leva a ilações de que não se trata de negócio processual, mas de negócio jurídico com efeito no processo.
Sob esse prisma há de se perquirir a utilização elevada da recuperação extrajudicial, cuja resposta se deduz na própria lei, quando esta estabelece uma espécie de escudo ao suspender as execuções contra o recuperando, a partir da recepção do pedido de recuperação.
O efeito dessa suspenção é justamente trazer maior segurança jurídica aos credores na negociação, no sentido de lhes garantir a igualdade de condições com os pares da mesma classe. Isto repercute positivamente para o devedor nas negociações, não premido pela possibilidade de uma proposta de falência decorrente da notícia que esteja negociando as dívidas.
A suspensão das ações executivas sofridas pelo devedor decorre do deferimento do pedido de recuperação (artigo 52, inciso III) e não da propositura do referido pedido. Essa defasagem de momentos processuais pode importar em lapso temporal suficiente para minar essa estratégia prevista pelo legislador, demonstrando a necessidade de rápida resposta do juízo na análise do pedido. A petição a ser analisada é instruída com peças técnicas, normalmente, não de domínio do magistrado e cujo juízo não conta com estrutura de apoio suficiente para lhe aportar elementos demonstrativos suficientes para uma decisão acerca da viabilidade econômica da recuperação.
Em algumas Varas de alguns Tribunais de Justiça criou-se a prática de remessa ao Ministério Público para uma opinião sobre a regularidade dos documentos de suporte do pedido recuperacional, destinados a demonstrar o suporte fático mínimo da viabilidade econômica operacional da recuperação da empresa solicitante. Esta prática funda-se na ausência de estrutura técnica ligada aos gabinetes dos Promotores de Justiça junto às Varas Empresariais, capazes de dar uma resposta rápida, não comprometendo a celeridade do despacho admissional.
Por outro lado, alguns juízes têm optado pela determinação da realização de uma perícia prévia a fim de se verificar a viabilidade econômica da recuperação. Algumas considerações acerca dessa prática devem ser analisadas. Primeiro, contrariando algumas decisões já tomadas, o profissional escolhido para funcionar como perito não pode ser confundido com o profissional escolhido para funcionar como administrador judicial. O conflito de interesses é patente. Segundo, é necessário pensar sobre a efetiva eficácia dessa perícia, cuja realização com resposta aceitável demandaria tempo bastante razoável, obviamente retardando o despacho e colocando em risco a eficiência do lapso temporal de suspenção das execuções. Terceiro, inquirir acerca da utilidade deste tipo de perícia, mesmo afastando a questão orçamentária da perícia não prevista, mas o próprio resultado da perícia é fundamental para o despacho? Considerando que compete aos credores a aprovação do Plano de Recuperação, limitado o juízo ao controle de legalidade. Por derradeiro, o procedimento comporta ou requere esses atos processuais?
Racionalizando o procedimento, verificamos que a recuperação judicial é procedimento de fase administrativa com ações incidentes, a exemplo das destinadas à discussão sobre os créditos. O papel do judiciário, nesse tipo de processo, é mais de fiscalização e acompanhamento, atuação que se enquadra na categoria da chamada jurisdição voluntária.
Tratando-se de jurisdição voluntária – “administração pública do interesse privado”, no dizer de Buzaid -, cabe verificar o alcance do despacho referente à petição de recuperação, cuja finalidade é levar a uma sentença homologatória. A nosso ver, está claro que o deferimento deve se pautar de uma verificação dos documentos instrutórios necessários. A questão está no grau de cognição realizada nessa fase postulatória.
Pendemos a entender que a cognição referente ao deferimento do processamento do pleito recuperacional é perfunctória. Cognição sumária e capaz de afastar documentos inadequados, mas sem a necessidade de se ter o pleno domínio sobre o conteúdo material da viabilidade econômica operacional da recuperação, se essa não é patente. Aliás, assim também nos procedimentos em contraditório, o despacho inicial deve se limitar ao exame superficial, exercendo a cognição em profundidade no momento adequado.
Portanto, pode-se concluir que a perícia prévia para recepção do processamento da recuperação judicial mostra-se desalinhada ao rito do processamento, ineficaz para o processo e não útil para a sentença meramente homologatória. Ainda que possa o juízo discordar anulando ou rejeitando o plano recuperacional com o fundamento na abusividade das condições apresentadas pela recuperanda ou, ainda, o deferimento fundado no abuso do direito de voto que não aprova o plano, não descaracteriza a ideia de administração pública do interesse privado.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
Por Edson Alvisi Neves
Revista Consultor Jurídico, 28 de agosto de 2017, 8h00