O Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal começaram a transferir para o Tesouro Nacional precatórios e requisições de pequeno valor sem intimar os titulares para conferir se estão mesmo paradas há dois anos.
O cancelamento das quantias paradas há dois anos foi determinado pela Lei 13.463/2017, em vigor desde 31 de agosto deste ano, que também manda as instituições financeiras comunicar os tribunais dos cancelamentos. De acordo com a Procuradoria-Geral da União, a expectativa é de “arrecadar” R$ 8,6 bilhões só este ano com a nova regra.
Caixa e Banco do Brasil repassam ao Tesouro precatórios não sacados sem checar se processos estão mesmo parados por inércia do credor.
A prática, que teve início em agosto, tem criado distorções. A lei foi editada para que o governo tome de volta precatórios reconhecidos pela Justiça, mas nunca sacados, numa forma de reaver o dinheiro de “credores omissos”.
Mas nem sempre o precatório deixa de ser sacado por omissão ou inércia do dono do dinheiro. Escritórios de advocacia reclamam que muitas vezes há incidentes processuais atrasando a expedição do alvará de levantamento dos valores, embora eles já tenham sido reconhecidos. É um atraso na conclusão do processo, mas não por culpa do credor. Mesmo assim, advogados foram surpreendidos com a notícia de que os precatórios de seus clientes (e, consequentemente, seus honorários) foram cancelados e o dinheiro, enviado ao Tesouro.
Um exemplo concreto é o do fundo de investimentos que comprou a titularidade de um precatório federal, mas viu o dinheiro ser transferido à Conta Única do Tesouro. O fundo havia pedido para se habilitar no processo como novo titular e o juízo da execução autorizou. Antes da publicação da decisão, no entanto, a Caixa cancelou o precatório e remeteu a quantia ao Tesouro, já que o processo estava aberto há mais de dois anos, embora por inércia do Judiciário, não do credor.
Os episódios têm acontecido por causa da interpretação que o governo e os departamentos jurídicos dos bancos deram à lei. No artigo 2º, ela diz que os precatórios e RPVs de mais de dois anos devem ser cancelados, e o parágrafo 1º do artigo determina a transferência para o Tesouro. Já o artigo 3º obriga os bancos a avisar os presidentes dos tribunais responsáveis pelos processos, que devem comunicar os juízos de execução.
Resolução do Conselho da Justiça Federal prevê rito parecido. Só acrescenta que, depois que o juiz da execução for comunicado, deve intimar o titular do precatório. Se ele quiser reaver a quantia, deve requerer e, nesse caso, vai entrar de novo na fila de pagamentos.
Mas os tribunais não têm sido avisados, e empresas e escritórios de advocacia têm sido surpreendidos com a notícia de que os valores foram “devolvidos” à União. “É uma verdadeira tunga”, comenta um advogado. É que precatórios, por definição, pertencem ao particular, e não ao ente público devedor. Ao cancelar o pagamento sem conferir o andamento processual, a União se apropria de dinheiro que a Justiça já reconheceu não ser dela.
Desobrigados
Os bancos afirmam que não têm obrigação de avisar ninguém sobre o cancelamento, que é uma obrigação legal para os precatórios e RPVs não levantados depois de dois anos. Em nota da assessoria de imprensa, o Banco do Brasil se limitou a dizer que os “atos praticados” de acordo com a Lei 13.463/17 “estão em consonância com a legislação vigente e com as orientações e determinações que vêm recebendo do CJF”.
A assessoria de comunicação da Caixa adota explicação semelhante. Em comunicado enviado à ConJur, o banco disse que a lei “não exige que a instituição financeira comunique previamente os tribunais e juízes de execução sobre o cancelamento do precatório”. De acordo com a nota, cabe aos bancos “apenas o repasse dos recursos ao Tesouro Nacional”. Quem deve ser comunicado, diz a instituição, é o presidente do tribunal onde o precatório foi reconhecido e ele é quem deve oficiar o juízo de execução.
O advogado tributarista Daniel Szelbracikowski Corrêa afirma que o cancelamento dos precatórios sem intimação dos titulares é ilegal e inconstitucional. Trata-se da incorporação à Conta do Tesouro de algo que o Judiciário já reconheceu não pertencer à União, argumenta.
Em artigo publicado na ConJur, Szelbracikowski afirma que a prática incentiva o devedor a “apresentar todo e qualquer tipo de recurso ou incidente protelatório” para atrasar o levantamento dos valores. “A transferência ao Tesouro de precatórios depositados há mais de dois anos afrontou o devido processo legal e a competência dos juízos das respectivas execuções, já que pressupôs a inércia dos credores em absolutamente todos os casos de depósitos não levantados no prazo de dois anos”, escreveu.
Os bancos não informam quanto já repassaram ao Tesouro com base na nova lei. Em julho, o governo havia divulgado que pretende "recuperar" R$ 10,2 bilhões com o cancelamento de precatórios e RPVs parados há mais de dois anos.
Na Justiça
O resultado inevitável é a judicialização. Escritórios que preferiram não ser citados informam que já tomaram as medidas cabíveis contra as manobras e aguardam decisões judiciais.
O Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul foi à Justiça Federal reclamar do texto vago da lei. De acordo com o MPF, por não falar em autorização judicial para o cancelamento dos precatórios, a lei viola o princípio constitucional da separação de poderes, já que é o Judiciário que administra precatórios. Em ação civil pública, o MPF pede a suspensão da aplicação da lei.
O pedido foi negado em primeira instância. Em sentença do dia 6 de outubro, a juíza Paula Weber Rosito afirmou que o MPF pede indiretamente a declaração de inconstitucionalidade da lei, o que não pode ser feito por meio de ação civil pública. Por isso, extinguiu o processo. O MPF já recorreu.
A discussão da constitucionalidade foi levada ao Supremo Tribunal Federal em agosto deste ano pelo PDT. Para a legenda, a lei viola os princípios constitucionais da separação de Poderes, segurança jurídica, igualdade, inafastabilidade da jurisdição e o respeito à coisa julgada.
O partido afirma ainda que, por decisão do STF, só a Constituição pode tratar de condições para pagamento de precatórios e sobre a competência para administrá-los. De acordo com o PDT, ao delegar às instituições financeiras controladas pela União a atribuição de, independentemente de ordem judicial, cancelar qualquer precatório emitido há mais de dois anos e ainda não levantado pelo credor, a lei “passa por cima de clara norma” de competência estabelecida na Constituição Federal.
Por Pedro Canário
Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2017, 16h16