Finalmente foi publicado o texto preliminar da futura PEC da Reforma Tributária. Façamos uma análise sintética apenas dos dispositivos pertinentes ao Direito Tributário.
Esta proposta, que não é definitiva, está sendo discutida pelo seu relator, Dep. Luiz Carlos Hauly, perante diversas instituições da sociedade civil para oportuna formulação de uma PEC a ser debatida no Congresso Nacional.
Esta proposta preliminar segue mais ou menos na linha da PEC 31/2007 de autoria do Deputado Virgilio Guimarães, cuja discussão no Parlamento Nacional acha-se paralisada desde o ano 2015.
Quanto a repartição de rendas tributárias a proposta sob exame prevê o seguinte:
- a) União – perde o IPI e o IOF e ganha outros dois impostos ficando com os seguintes impostos:
I –Imposto de importação – II
II – Imposto de exportação – IE
III – Imposto sobre a renda – IR
IV – IPI – revogado
V – IOF – revogado
VI – Imposto sobre propriedade territorial rural – ITR
VII – Imposto sobre grandes fortunas – IGF
VIII – Imposto sobre petróleo e seus derivados, combustíveis e lubrificantes de qualquer origem, cigarros e outros produtos do fumo, energia elétrica, serviços de telecomunicações, bebidas alcoólicas e não alcoólicas, veículos automotores novos, terrestre, aquáticos e aéreos, bem como pneus, partes e peças nestes empregados.
IX – Imposto Sobre Transmissão causa mortis e doações de quaisquer bens ou direitos – ITCMD.
- b) Estados – perdem o ITCMD e o ICMS e ficam com os seguintes impostos: I – Imposto sobre propriedade de veículos automotores terrestre, aquáticos e aéreos – IPVA – menos os veículos novos inseridos na competência da União.
II – Imposto sobre operações com bens e serviços ainda que se iniciem no exterior – IVA – que incorpora os atuais IPI, ICMS, ISS, CIDE, PIS/CO- FINS- Faturamento; PIS/COFINS-importação e Salário Educação.
- c) Municípios – perdem o ISS e não ganham nenhum imposto novo ficando reduzida a sua competência impositiva aos dois impostos atuais:
I – Imposto predial e territorial urbana – IPTU
II – Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis por ato inter vivos e a título oneroso – ITBI
Breve análise
- A União, condutora da Reforma Tributária, aumenta a sua fatia no bolo tributário barganhando os dois impostos regulatórios (IPI e IOF) por um imposto incidente sobre mercadorias selecionadas dentre as mais rendosas em termos de arrecadação tributária. Chegou-se ao casuísmo de atrair para si a competência impositiva estadual o IPVA em relação aos veículos novos e sem prejuízo de sua participação de oitenta e oito centésimo por cento do produto de arrecadação do IVA (at. 156-A).
Por tais razões, a mídia já apelidou essa forma de tributação casuística de imposto seletivo. Só que não há mais previsão de seletividade facultativa (ICMS) ou impositiva (IPI) em função da essencialidade dos produtos ou mercadorias. A União poderá exacerbar as alíquotas onde for mais rentável e mais fácil de arrecadar (energia elétrica e telecomunicações, cujos impostos incidentes são arrecadados pelas concessionárias de serviço público por meio de contas tarifárias, onde estão embutidos valores de uma porção indeterminada de penduricalhos, e veículos novos, cujo imposto incidente é arrecadado antecipadamente pela montadora por meio de substituição tributária, com base no § 7º, do art. 150 da CF que fica mantido.
- O poder ordinatório da União por meio de tributos fica restrito ao imposto de importação e ao imposto de exportação onde a margem de atuação do governo é bastante limitada em função da OMS.
- A União perde o instrumento de intervenção no domínio econômico com a supressão da CIDE, mas continua com a matriz constitucional do art. 149 da CF que poderá ensejar a recriação da CIDE com outro nome, oportunamente, quando os cofres públicos ficarem minguados por conta de despesas improdutivas. Diga-se a bem da verdade, tributos regulatórios e de natureza interventiva sempre serviram aos propósitos do governo para suprir os recursos financeiros faltantes, com desvio de sua finalidade, para custear as despesas correntes.
- Há uma pequena impropriedade técnica no inciso III, do § 2º, do art. 153 ao prescrever a incidência do IR sobre as “verbas indenizatórias, naquilo que superar o valor do gasto ou do patrimônio material indenizado”. Ora, o que exceder do valor da justa indenização não corresponderá à indenização do patrimônio desfalcado. Na falta de consenso das partes cabe ao Judiciário fixar esse valor.
- No que tange ao imposto sobre operações com bens e serviços – IVA – cabente aos Estados nos termos da Lei Complementar federal convém acrescentar a expressão “relativas à circulação de bens e serviços”, bem como suprimir a expressão “a qualquer título” constante da alínea a, do inciso III, do § 7º, do art. 155, para que não se perca o entendimento firmado pela jurisprudência que levou décadas para encontrar o exato sentido em termos de circulação jurídica. Rios de tinta foram gastos após o advento da EC nº 33/01 que introduziu a incidência do ICMS sobre “a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por qualquer pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre os serviços prestados no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço”. Durante longos anos o STF entendeu que o leasing internacional sujeitava-se ao ICMS (RE nº 206.069/SP, DJ 1-9-2005) até que no julgamento do RE nº 540.829, DJe 16-6-2016, foi revertida a tese, por maioria de votos, decidindo-se, em regime de repercussão geral, que não incide o imposto na operação internacional de leasing por ausência de circulação jurídica. O constituinte derivado poderia ter criado outro tipo de ICMS, mas poderia jamais ter feito a previsão dessa tributação no bojo do dispositivo que concerne ao ICMS, art. 155, II, § 2º da CF o qual exige circulação jurídica.
- A outra observação é a complexidade da iniciativa do projeto de lei complementar federal para instituir esse imposto conhecido como IVA que, aliás, de IVA (imposto sobre valor agregado) só tem o nome. Ele continua com os mesmos vícios do atual ICMS incidente sobre o valor total de cada operação, tributado por dentro, obtendo-se a não cumulatividade pelo mecanismo contábil de créditos pela entrada de mercadorias e débitos pela saída de mercadorias, o que vem causando distorções sempre que houver isenção na etapa próxima ao ciclo final de comercialização, quando todos os créditos acumulados nas operações anteriores devem ser anulados. É o que chamamos de isenção invertida; aumenta-se a arrecadação tributária por meio de isenções. E mais, esse regime de tributação por dentro que faz com que o tributo incida sobre si próprio atenta contra o princípio da transparência tributária e facilita a ação de sonegadores ou de simplesmente inadimplentes, pois não há separação do preço real da mercadoria ou do serviço pertencente ao agente econômico do valor do tributo que é devido ao fisco. Perde-se a oportunidade de implantar o regime de tributação por fora que poderá contribuir para livrar milhares de processos de natureza tributária que ocupam grande parte do tempo precioso dos tribunais.
- O Município perde o imposto de maior arrecadação, o ISS, e nada ganha em troca. Das três entidades políticas o Município é o que mais se encontra em contato permanente com a população posicionando-se sempre na linha de frente na solução de problemas emergenciais sendo que, tanto o Prefeito, como os vereadores que compõem a Câmara Municipal são os que mais representam o povo e têm condições de atender as reivindicações mais urgentes e prioritárias. É a única entidade política que na formulação de leis orçamentárias promove, por força de dispositivo constitucional, audiências públicas para influir no direcionamento dos recursos financeiros arrecadados a título de tributos. Consigne-se, por fim, que a autonomia dos entes políticos componentes da Federação assegurado pelo art. 18 da CF depende de autonomia político-administrativa deles. E não pode haver autonomia político-administrativa sem autonomia financeira representada pela partilha de rendas tributárias, com discriminação de impostos privativos cabentes a cada um dos entes políticos que compõe a Federação Brasileira.
- Apesar da proposta sob exame ser denominada de “simplificação tributária” ela, na verdade, nada simplifica, pelo contrário traz mais complexidade, o que é visível pela simples leitura de seu texto. O ITCMD continua separado do ITBI só que agora fica inserido na competência da União, depois de ter passado pela competência do Município e pela competência estadual sob forma unificada (ITCM/ITBI), ou pela forma cindida (ITCMD, de um lado e ITBI, de outro lado). O IPVA ficou inserida na competência privativa dos Estados, mas com exclusão de veículos novos e daqueles destinados à pesca[1] e ao transporte público de passageiros e cargas, e com o produto de sua arrecadação totalmente pertencente ao Município onde for licenciado o veículo. Mexe profundamente com o pacto federativo concentrando ainda mais na esfera da União o poder de imposição tributária que passa a legislar, inclusive, sobre impostos cabentes a outras entidades políticas, além da inusitada participação na partilha do produto de arrecadação de imposto estadual.
- Em que pese o ingente esforço do nobre Deputado Luiz Carlos Hauly, Relator da Reforma Tributária, que vem expondo as suas idéias e colhendo a manifestação de diversos segmentos da sociedade civil em um trabalho árduo, cansativo e bastante meritório, receio que essa proposta de reforma conduzida pela União, detentora da maior fatia do bolo tributário, dificilmente será aprovada pelo atual Congresso Nacional. Poderá, a exemplo de outras reformas, descambar para uma mini reforma implicando aumento da carga tributária para custear as despesas do Estado que não mais cabem dentro do PIB. O certo seria a Reforma Política (com redução do tamanho do Estado) preceder a Reforma Tributária.
- Seria preferível manter o atual sistema nacional já suficientemente decantado ao longo de quase três décadas, apenas promovendo explicitações de textos sobre os quais ainda perduram discussões de monta perante os tribunais, na linha das propostas que fizemos e que se acham publicadas no nosso Direito financeiro e tributário, 26 ed. Atlas, 2017.
[1] Não se sabe ao certo se é ou não de propriedade do pescador artesanal.
Kiyoshi Harada
Fonte: tributario.com.br