No dia 4 de dezembro, os conselheiros da 1ª Turma da Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) debateram dois temas inéditos relacionados a preço de transferência: em um dos casos, discutiu-se a aplicação do conceito de “pessoa vinculada”, e no segundo debateu-se a possibilidade de uma empresa alterar a apuração do método do preço de transferência, conforme um benefício posterior.
Os processos trouxeram discussões que, segundo advogados, seriam inéditas na jurisprudência da Câmara Superior. Os casos tiveram resultados divergentes, com vitória do contribuinte em um deles.
O primeiro caso envolvia a farmacêutica EMS, em um auto de infração com cobrança tributária em cerca de R$ 13 milhões. Os autos mostram que a empresa importou matérias-primas de três empresas estrangeiras: a Cavestany S.A e a Lake Ville Equities S.A, ambas uruguaias, além da holandesa Pharmanedh C.V.
A divergência surgiu porque a Receita Federal considerou, ao autuar a contribuinte, que havia a vinculação entre as empresas estrangeiras e a importadora nacional. Como estas companhias exportaram bens apenas para a EMS no Brasil seria caracterizada a vinculação.
A fundamentação legal foi o inciso X do artigo 23 da Lei nº 9.430/1996, que considera vinculada à pessoa jurídica no Brasil “a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, em relação à qual a pessoa jurídica domiciliada no Brasil goze de exclusividade, como agente, distribuidora ou concessionária, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos.”
O caso começou a ser analisado pela turma na sessão de novembro, mas teve seu debate estendido para o mês de dezembro
Para a farmacêutica, a interpretação errônea da Fazenda não levava em conta que se tratava da importação de insumos para a produção, de maneira que não estariam presentes as características de pessoas vinculadas.
O argumento foi acolhido pela conselheira Cristiane Silva Costa. Para a relatora do caso, apenas parte do recurso deveria ser conhecido, não devendo ser apreciados os recursos acerca da ilegalidade da Instrução Normativa (IN) 243/2002 e a incidência de juros sobre multa, por conta de súmulas aprovadas em 2018. Na parte conhecida, a relatora deu provimento ao recurso, reconhecendo que a fiscalização não conseguiu comprovar que havia a alegada exclusividade que comprovaria a vinculação.
A turma seguiu este entendimento por unanimidade. “Não parece razoável dizer que a fiscalização pode utilizar apenas a questão da exclusividade para comprovar uma vinculação”, complementou o conselheiro André Mendes de Moura, representante da Fazenda Nacional.
No segundo caso do dia, pelo voto de qualidade, a turma considerou que a alteração do método de apuração do preço de transferência, previsto no artigo 20-A da Lei nº 9.430/1996, não pode ser aplicado a fatos anteriores à lei. Foi a primeira vez que a turma discutiu a aplicação do artigo.
A Komatsu, que atua no ramo de máquinas pesadas para a construção civil, foi autuada em 2014, sobre fatos ocorridos em 2011. Para a contribuinte, a fiscalização, que culminou na cobrança de Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), não levou em consideração o artigo 20-A da Lei.
O texto em questão determina que, a partir do ano-calendário de 2012, a opção por um dos métodos previstos na lei será inalterável, salvo quando o método ou algum de seus critérios de cálculo venha a ser desqualificado pela fiscalização. Então, nesta situação, a empresa deve ser intimada para, no prazo de 30 dias, apresentar novo cálculo de acordo com outro método previsto na legislação.
Apesar de o dispositivo afirmar que o benefício é “a partir do ano-calendário de 2012”, a defesa afirmou que a norma tem caráter procedimental. “As normas que dispõem sobre o procedimento de lançamento têm aplicabilidade imediata”, afirmou a defesa em memoriais, se referindo ao artigo 144 do Código Tributário Nacional (CTN). “A partir do ano-calendário de 2012, todas as fiscalizações iniciadas após a sua vigência devem observar o artigo 20-A”.
A defesa foi feita pelo advogado Luís Eduardo Schoueri, do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich e Schoeuri Advogados. Em sua apresentação, Schoueri apontou para o que afirmou ser a “impossibilidade” de ultratividade da norma. “Para as normas de natureza procedimental, aplica-se a lógica de que ‘o tempo rege o ato'”, afirmou em sua apresentação.
“Com a introdução do artigo 20-A no sistema tributário brasileiro, o procedimento de lançamento, até então vigente para fins de preço de transferência, foi modificado pelo legislador”
Luís Eduardo Schoueri, do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich e Schoeuri Advogados e patrono do caso
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), por sua vez, foi representada pelo procurador Moisés de Sousa Carvalho Pereira. Em sua apresentação, Pereira afirmou que toda a defesa se baseia na premissa de que o contribuinte tinha o direito a alterar o preço de transferência a qualquer momento.
A Komatsu, para a PGFN, não estaria levando em conta o fato de que a legislação garante o benefício após o ano de 2012, o que não valeria para fatos anteriores.
A relatoria do caso foi também da conselheira Cristiane Silva Costa, representante dos contribuintes. Em seu voto, Cristiane considerou que o artigo 20-A é de caráter procedimental e que, portanto, se aplica a fatos geradores anteriores, caso a fiscalização comece depois de 2012.
Apesar de a decisão ter sido dada pelo voto de qualidade, por meio do qual o entendimento da presidente do Carf, Adriana Gomes Rêgo, foi utilizado para resolver a questão, um conselheiro representante dos contribuintes, Demetrius Nichele Macei, divergiu do voto de Cristiane, e um representante da Fazenda, Flávio Franco Correa, acompanhou a relatora.
Processos citados na matéria:
Processo nº 16561.720138/2014-17
Komatsu do Brasil Ltda x Fazenda Nacional
Processo nº 16561.720138/2013-36
EMS S/A x Fazenda Nacional
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GUILHERME MENDES – Repórter
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