Escrevo antes da conclusão do julgamento do RHC 163.334, acerca da criminalização da inadimplência do ICMS próprio, conhecido como regime de apuração normal. Nele se discute se o não recolhimento de ICMS regularmente declarado pelo contribuinte deve ser enquadrado como crime de apropriação indébita (inciso II, artigo 2º, da Lei 8.137/90).
Votaram a favor da criminalização os ministros Roberto Barroso (relator), Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Luiz Fux. Votaram contra a criminalização os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. O placar está em 6 x 3 e matematicamente não tem como ser alterado, pois restam apenas dois votos a serem computados, dos ministros Celso de Mello e Dias Toffoli, o qual pediu vistas dos autos.
Ocorre que Direito não é matemática, e os votos já proferidos podem ser alterados. Posso estar adotando uma postura ingênua, mas um dos deveres da doutrina é demonstrar os erros dos julgamentos, através de construtivas análises críticas. Cito de memória um caso em que isso ocorreu: RE 852.475, tema 897, sobre prescrição patrimonial. Existem outros.
Assisti partes da sessão de julgamento e as qualificadas sustentações orais dos advogados Igor Mauler Santiago e Luiz Gustavo Bichara, além das reportagens de diversos veículos de mídia (aqui; aqui; aqui; e aqui), inclusive do próprio STF (aqui).
Consta que a maioria votou pela criminalização da conduta “quando houver intenção”, tendo sido formada sua convicção a partir de outro julgamento do STF, o RE 574.706, no qual foi afirmado que deixar de pagar ao Estado o ICMS declarado “não denota apenas e tão somente inadimplemento, mas, sim, disposição de recursos de terceiros, aproximando-se de uma espécie de apropriação tributária”. Observem que a frase denota uma dúvida importante para fins penais: “espécie de apropriação indébita”.
Nesse sentido, para a ministra Rosa Weber, “a cobrança e a posterior omissão de recolhimento pelo comerciante implica efetivamente apropriação de valor de terceiros, o que legitima a tipificação penal”. Para a caracterização do crime é imprescindível o dolo, não sendo admitida modalidade culposa.
Consta ainda que o ministro Barroso equiparou a figura do contribuinte com a do consumidor, que arca com o custo do imposto, já que o comerciante embute o ICMS no preço final. Portanto, se a empresa não repassa o valor ao Fisco, comete crime. Disse que “se o sujeito furtar uma caixa de sabão em pó no mercado, o Direito Penal é severo. Penso que quando há crime tributário, deve ser igualmente sério”. Disse ainda que “tratar diferentemente furto da sonegação dolosa faz parte da seletividade do brasileiro, que considera que crime de pobre é mais grave do que crime de rico”. Concordo, mas, no caso, haverá crime de apropriação indébita?
Em linha oposta, o ministro Gilmar Mendes entendeu que só se deve tipificar a conduta como crime “se o não pagamento do tributo envolver artifício fraudulento que impossibilite a cobrança”, sob pena de estar se implantando uma “política criminal arrecadatória”.
O ministro Marco Aurélio chegou a chamar de “criativo” o tribunal de origem da demanda, que considerou crime o não recolhimento de ICMS declarado, pois seria o caso de “uma ação penal fazendo às vezes de executivo fiscal”, registrando ainda que a sociedade vive “tempos estranhos”, jamais tendo o STF permitido “a punição penal pela simples existência de dívida fiscal. Não cabe no caso discurso simplesmente moral a partir da sonegação”.
Penso que a douta maioria até aqui formada neste caso está errada, e justifico.
A pergunta central é saber se o delito de apropriação indébita, previsto no inciso II, artigo 2º, da Lei 8.137/90, prevê a hipótese de não pagamento de ICMS próprio. Transcreve-se a norma:
(Constitui crime) deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Este artigo dialoga com o artigo 168 do Código Penal, que define apropriação indébita: “apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção”.
Comecemos identificando onde há crime.
Já está assente que haverá crime quando ocorrer a retenção de ICMS por substituição tributária (ICMS-ST) e esta não for recolhida aos cofres públicos correspondentes, pois, nesta modalidade de apuração, não há uma sistemática de créditos e débitos, sendo o tributo retido por um agente da cadeia econômica, o qual fica incumbido de recolhê-lo aos cofres públicos. Não havendo o recolhimento do que já foi retido, o tipo penal acima transcrito se aplica, pois terá havido uma cobrança antecipada do ICMS que será devido nas etapas futuras.
Está igualmente assente que ocorre o crime acima tipificado quando o empregador retém o valor das contribuições previdenciárias do empregado e não as recolhe ao fisco federal. Também aqui há uma cobrança antecipada do tributo, e, caso não haja o recolhimento do que foi retido, ocorrerá o crime de apropriação indébita, tipificado no inciso II, artigo 2º, da Lei 8.137/90.
O mesmo sentido se verifica quando há retenção de Imposto sobre a Renda na fonte pelo empregador (IRRF), e este não realiza o recolhimento. Haverá crime de apropriação indébita.
Todavia, não há crime nas operações com ICMS próprio, pois a estrutura jurídica desse regime tributário é completamente diversa das acima descritas. E isso faz toda a diferença.
A apuração do ICMS próprio se assemelha a uma conta corrente com o fisco. Não existe certeza de que ao final do mês haverá ICMS a pagar. O melhor exemplo se verifica nos meses de formação de estoques. Usemos o período escolar para exemplificar. As empresas que trabalham nesse segmento farão compras em janeiro e fevereiro, mas o grosso das vendas ocorre em março. Pode acontecer que, em face de compras maiores do que as vendas, o ICMS a pagar em janeiro ou fevereiro seja baixo — ou até inexistente. Havendo inadimplência, haverá crime? Ou esses valores serão compensados com as vendas massivas de março? E em abril e maio, haverá ICMS a pagar em razão da queda de vendas? Repito: nesta estrutura jurídica há uma conta corrente com o fisco, que varia de acordo com a formação e a desova dos estoques das operações comerciais.
Observando esta operação com uma lupa (isto é, microjuridicamente), pode-se até identificar uma apropriação do valor do tributo, embutido no preço da mercadoria — afinal, é sempre o consumidor quem paga o tributo (contribuinte de fato); porém, quando analisada a operação como um todo (isto é, macrojuridicamente), constata-se que nem tudo que foi retido é necessariamente recolhido aos cofres públicos, pois a estrutura jurídica é diferente, em face da conta corrente mencionada. É preciso ver a floresta (o todo, o macro), e não apenas as árvores (a parte, o micro).
Observem-se os dados constantes do site da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo. Entre outubro e novembro/2018 a arrecadação de ICMS caiu 2,1%. Mais remotamente, entre dezembro de 2016 e janeiro de 2017 a arrecadação de ICMS caiu 2,4%. Isso aponta para a conta corrente existente, entre a formação e a desova dos estoques. É bem verdade que os dados estão misturados, entre ICMS próprio e ICMS-ST, mas demonstram, de forma tendencial, o que acima foi afirmado, entre o micro e o macrojurídico. Se os dados estivessem segregados, apontariam para uma queda mais forte do ICMS próprio, em face da sazonalidade da formação dos estoques (festas de Natal, dia dos namorados etc.) em cada segmento econômico.
Acredito nas boas intenções de todos os ministros que votaram pela criminalização da conduta, porém a norma existente desde o remoto ano de 1990 (artigo 2º, inciso II) jamais contemplou esse tipo de interpretação acerca do ICMS próprio, e sua estrutura não permite a análise incriminatória neste regime tributário.
Consta que o ministro Fux deu o exemplo de uma empresa milionária que não paga tributo, cujos sócios residem em mansões, e que isso demonstraria o ânimo de não pagar e de enriquecer à custa do Estado, sendo tal conduta “a gênese da corrupção”. Abstraindo a questão jurídica, não tratada nesta frase, indago: criminalizando a conduta haverá redução da corrupção ou as possibilidades corruptivas se ampliarão?
É necessário que o STF se atenha ao Direito, sob pena de trazer ainda mais insegurança jurídica às relações negociais no Brasil. Caso o contribuinte tenha agido com alguma espécie de fraude ou ardil, haverá o crime tipificado no artigo 1º, inciso II, da Lei 8.137/90 (“fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal”), ou no inciso III do mesmo artigo (“falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável”), ou ainda no inciso IV (“elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato”), ou em qualquer outro tipo penal estabelecido naquela norma. Porém no caso concreto não há o crime de apropriação indébita, previsto no artigo 2º, II, da referida Lei.
As incertezas existentes acerca da prisão em 2ª instância, com as idas e vindas do STF, que estão acarretando insegurança política em nosso país, podem se repetir neste julgamento, no qual se subverte toda a jurisprudência assente em uma norma que está para completar 20 anos, modificando por completo sua interpretação, e causando insegurança jurídico-econômica nas relações negociais. É necessário estar atento a isso. O necessário combate à corrupção e à sonegação não podem se afastar do Direito.
Não se trata de uma questão de dolo ou culpa. Até se chegar a esta etapa probatória muitos já terão sido presos, e a possibilidade de corrupção se ampliará, embora deva admitir que a da sonegação diminuirá — porém, quem ainda declarará os valores sem pagar, obedecendo a orientação do próprio STF, que está para ser alterada?
O debate sobre a questão da conduta dolosa somente será identificada no curso da ação penal, e, até então, muito pau de arara já terá sido aplicado, seja em sentido real ou figurado, como gosta de afirmar nosso presidente. Tal concepção se adequa muito mais à questão do devedor contumaz, aquele que tem como modelo de negócio a sonegação, objeto de debates no Congresso através do Projeto de Lei 1646/19, conforme expus em outra coluna.
O ponto central é que o tipo penal da apropriação indébita (inciso II, artigo 2º, Lei 8.137/90) não contempla a inadimplência do ICMS próprio. Criminalizar a inadimplência nesta hipótese será um erro do STF.
Uma vez que este julgamento deve prosseguir ainda esta semana, espera-se que os ministros que já votaram reanalisem sua posição, pois, a se confirmar o placar provisório, seguramente trará funestas consequências ao país, além de criar um tipo penal inexistente em face do Princípio da Reserva Legal, sob a ótica tributária e penal.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2019, 8h00