A antiga Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (decreto-lei 4.657, de 1942) foi ampliada pela lei 13.655, de 2018. É natural que, nesses primeiros meses, os intérpretes tenham dúvidas e cometam enganos, inclusive sobre este ponto básico: qual o âmbito de incidência dos novos dispositivos?
O tema tem interessado os tributaristas, em especial depois de a Câmara Superior de Recursos Fiscais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, em decisão de 21 de junho de 2018, recusando questão de ordem no processo 19515.003515/2007-74, ter feito afirmação bastante genérica, e incisiva, no sentido da “inaplicabilidade da Lei nº 13.655, de 2018, à atividade judicante do CARF”.
Como fundamento, o órgão tributário entendeu que a lei só “promoveu alterações na atuação dos órgãos de controle da Administração Pública, principalmente do Tribunal de Contas da União (TCU)”. Argumentou que “os dispositivos ora tratados basearam-se na obra dos Professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto, denominada Contratações Públicas e Seu Controle, o que não deixa margem de dúvida acerca da natureza essencialmente administrativa dos novos dispositivos”. Impressionou-se também o CARF com o fato de que “em nenhum momento a lei em tela sinaliza que seria dirigida à atividade judicante administrativa, como é o caso do CARF”, de modo que, “quando muito, a aplicação desta lei no CARF restringir-se-ia às atividades essencialmente administrativas, afetas à sua Secretaria-Executiva”.
Dada a enorme relevância da matéria, penso ser meu dever pessoal colaborar para a boa compreensão da novidade legislativa. Sinto-me obrigado a fazê-lo inclusive pelo fato de o acórdão do CARF haver valorizado, e com ênfase, não só meu trabalho na elaboração da própria lei, mas também manifestações minhas à imprensa quando dos debates finais do projeto.
A ampla incidência sempre foi característica da antiga Lei de Introdução. Seu art. 1º, caput, diz que “salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”. E nunca houve dúvida de que essa regra deveria incidir sobre leis tributárias, leis funcionais, leis sobre serviços públicos, leis previdenciárias, enfim, quaisquer leis.
O mesmo ocorre com seus arts. 2º (“a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”), 3º (“ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”), 4º (sobre a “lei omissa”), 5º (relevância dos “fins sociais” e “exigências do bem comum”), 6º (“efeito imediato e geral” da lei, salvo “o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”), e assim por diante. Justamente por isso se diz, e é certo, que a Lei de Introdução é uma lei de sobredireito.
Esses antigos dispositivos não têm, como se sabe, qualquer referência expressa ao direito tributário ou à atividade administrativa tributária, judicante ou não. Nem por isso há incerteza quanto à vinculação a eles dos julgadores administrativo-tributários. Normas gerais de interpretação e aplicação de Direito obrigam a todos que interpretam e aplicam o Direito, independentemente de citação nominal. De resto, se a atividade judicante do Judiciário está vinculada à Lei de Introdução, porque atividade judicante de simples autoridade administrativa estaria isenta?
A resposta quanto ao âmbito de incidência dos novos arts. 20 a 30 da Lei de Introdução é bem clara, a começar da ementa da lei que a alterou. Trata-se de “disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e aplicação do direito público”. Os dispositivos da lei 13.655 não são de direito administrativo em sentido estrito (isto é, sobre contratos administrativos, servidores públicos, serviços públicos e outros temas a cargo dos professores desse ramo), tampouco sobre controle da administração; a lei é geral de direito público.
Seus dispositivos são abrangentes e serão observados nas operações jurídicas envolvendo o direito público em geral. Entendem-se como tal as operações cuja tutela tenha como centro as autoridades administrativas, embora com fiscalização e participação de controladores externos e juízes. Em suma, os arts. 20 a 30 da Lei de Introdução tratam do direito público cuja aplicação primária seja administrativa. Está fora o direito penal, pois sua aplicação primária é judicial, não administrativa, ainda que nele atuem as autoridades policiais e penitenciárias vinculadas à administração pública, mas como coadjuvantes.
Na Lei de Introdução essa opção conceitual está bem clara desde o art. 20, o primeiro da nova série, com uma fórmula que se repetirá nos demais artigos. Diz o caput: “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.” Não é casual a enumeração (administrativa, controladora e judicial), tampouco a precedência da esfera administrativa: a lei está a regular a criação e a aplicação de normas de direito público de competência primária da administração, sujeita à atuação secundária do controle externo e do Judiciário.
Quanto à esfera administrativa, a lei não fez distinções nem previu tratamento especial ou imunidades para suas subdivisões. Logo, a Lei de Introdução reformada tem de ser observada por todas as autoridades administrativas, seja qual for sua atuação material específica (ativa, consultiva, controladora, licenciadora, reguladora, sancionadora, etc.), a legislação setorial a que está sujeita (contratual, concorrencial, tributária, etc.), sua vinculação organizacional (autoridades singulares, membros de colegiado, etc.) ou seu nível hierárquico (primeira instância, órgãos recursais, Chefe do Executivo, etc.).
Eis então o âmbito objetivo de incidência da lei: situações de criação e aplicação do direito público sob tutela primária da administração pública como um todo. Ela impacta diretamente a aplicação dos direitos constitucional, tributário, administrativo (em sentido estrito), financeiro, ambiental, sanitário, concorrencial, previdenciário, de trânsito, enfim, os ramos do direito público.
Não teria fundamento a interpretação restritiva dos arts. 20 a 30 da Lei de Introdução para excluir sua observância pelas autoridades administrativas sujeitas a ramos do direito público bem organizados por leis setoriais, como o Código Tributário (lei 5.072, de 1966) e a Lei da Concorrência (lei 12.529, de 2011).
O objetivo dos novos artigos da Lei de Introdução não foi alterar regras de quaisquer das leis setoriais, de modo que estas continuam em vigor, sem alteração. Mas (na linguagem, aliás, do conhecido § 2º do art. 2º da velha Lei de Introdução) a nova lei 13.655 estabelece “disposições gerais … a par das já existentes” nessas leis setoriais. Na Lei de Introdução não há disposições especiais para ramos específicos do direito público, mas disposições gerais sobre a aplicação do direito público. Assim, na interpretação das leis setoriais em matéria pública, e nas decisões das questões que as envolvam, as disposições gerais da Lei de Introdução reformada deverão ser consideradas, como é correto fazer com disposições de caráter geral.
No tocante aos novos preceitos, incluídos pela lei 13.655, é correto, então, reconhecer que eles impactam a aplicação de normas de todos os ramos do direito público (à exceção do penal), observadas, evidentemente, as situações cuja regulação seja neles tratada. Exemplo é a situação dos §§ 2º e 3º do art. 22: exercício de poder sancionatório por qualquer órgão da administração.
A quantificação de sanções impostas por autoridade administrativa em qualquer campo – sanções tributárias, previdenciárias, ambientais, consumeristas, concorrenciais, disciplinares, etc. – se não estiver diretamente nas normas setoriais (as multas de trânsito são exemplo de quantificação no próprio Código Brasileiro de Trânsito, o qual não deixou margem para a quantificação pelo aplicador) levará em conta os fatores da Lei de Introdução: § 2º do art. 22 (natureza, gravidade e danos da infração, bem como agravantes e atenuantes) e § 3º (dever de considerar “as demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato” já aplicadas ao sujeito punido).
Importante é que as novas normas da Lei de Introdução são obrigatórias não apenas para toda a administração pública – e com independência das matérias envolvidas (contratuais, funcionais, tributárias, não importa). A obrigatoriedade vai muito além.
Os dispositivos vinculam igualmente os órgãos autônomos de controle, como Tribunais de Contas, Ministério Público e mesmo o Legislativo (quando age como controlador, para além do exercício da função de legislar em sentido estrito). A ampla incidência subjetiva dos novos artigos da Lei de Introdução está expressa nestes termos: ela se aplica nas “esferas administrativa, controladora e judicial” (arts. 20, 21, 23, 24 e 27).
Logo, está incluído também o Judiciário, sempre que, lidando com questões de direito público sob tutela primária da administração, deparar-se com as situações reguladas pela Lei de Introdução. Um exemplo está na situação do art. 20: quando o juiz tiver que decidir quanto aos efeitos concretos de valores jurídicos abstratos consagrados em normas de direito público. Se, para resolver litígio tributário, o juiz tiver de firmar interpretação sobre os efeitos concretos do “princípio da capacidade contributiva”, que é um valor jurídico abstrato, além de considerar as normas da legislação específica que balizam o poder de tributar, deverá atentar para “as consequências práticas da decisão”, e demonstrar “a necessidade e a adequação da medida imposta … inclusive em face das possíveis alternativas”.
Impor normas comuns a todos os administradores, controladores e juízes não significa desconhecer as especificidades de organização e funcionamento do controle externo e do Judiciário, tampouco as diferenças que existem na extensão de suas competências de aplicação das normas de direito público cuja tutela primária seja da administração. Para a sujeição de todos às mesmas normas sobre criação e aplicação do Direito, a Lei de Introdução levou em conta a necessidade de coerência normativa: nem o juiz, nem o controlador, podem invalidar, sancionar ou substituir as opções do administrador usando parâmetros de interpretação e decisão discrepantes dos que são naturais e exigíveis na função administrativa.
A interpretação tributária feita pelo juiz tem de estar sujeita às mesmas diretrizes que vinculam o administrador tributário. Por identidade de razão, autoridades administrativas judicantes (como o CARF) não podem, para decidir casos, usar conjunto próprio e autônomo de referências jurídicas, diversas das que estão a vincular o administrador tributário ativo e o Poder Judiciário. Convém não esquecer que, ao menos nesse sentido, o Direito é uno, e que a autoridade judicante administrativa em matéria tributária nada mais faz do que aplicar o Direito, e não outra coisa qualquer.
Em síntese, os arts. 20 a 30 da Lei de Introdução têm, como âmbito objetivo de incidência, situações envolvendo normas dos ramos do direito público cuja aplicação primária caiba à administração pública como um todo, e, como âmbito subjetivo, as esferas administrativa, controladora e judicial, em todos os níveis federativos (federal, estadual, distrital e municipal).
Um dos novos dispositivos da Lei de Introdução, o art. 26, tem aplicação mais focada do que outros, pois regula diretamente o exercício da competência apenas de autoridades administrativas, não, portanto, de autoridades controladoras e judiciais (“… a autoridade administrativa poderá … celebrar compromissos com os interessados…”). O objeto do compromisso administrativo pode ser qualquer “irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa” ligada às competências de autoridades administrativas, inclusive de direito ambiental e tributário, por exemplo. Digo que o preceito é mais focado só por seu objetivo ser regular a competência de transacionar dos administradores, não de controladores e juízes. Mas nem por isso o art. 26 deixa de ter efeitos indiretos sobre estes, pois impactará sim sua atuação na fiscalização e revisão de validade dos compromissos administrativos.
Voltando ao direito tributário, muito naturalmente a criação e a aplicação de suas normas nas esferas administrativa (por quaisquer autoridades) e judicial deverá seguir o disposto na Lei de Introdução. Seus novos preceitos não são tributários, claro, nem têm a finalidade específica de regular as limitações ou o sistema de tributação. Seu foco não é tributário. O que a Lei de Introdução contém são normas gerais de Direito, isto é, preceitos que, não sendo específicos do direito tributário, incidem também em seu âmbito, e isso justamente pelo fato de serem gerais.
Em virtude de sua generalidade, é irrelevante, para fins do art. 146 da Constituição, que a Lei de Introdução seja lei ordinária, e não lei complementar. A Constituição exige lei complementar apenas para o Congresso Nacional editar certas normas especiais de direito tributário, isto é, para dispor sobre “conflitos de competência, em matéria tributária”, para “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar” e para aprovar “normas gerais de direito tributário”. Por óbvio, o preceito não impede a repercussão tributária de normas gerais de Direito (como a do art. 3º da Lei de Introdução), tampouco de normas de direito civil (com definições da compra e venda ou da locação, por exemplo, que concorrem na caracterização de hipóteses tributárias) e outras. O direito tributário é parte do ordenamento jurídico brasileiro, não um mundo autônomo construído com base somente em normas especificamente tributárias, constitucionais e legais.
Todos os novos artigos da Lei de Introdução têm efeitos relevantes no campo tributário.
As autoridades administrativas tributárias têm o dever de aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas tributárias por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas, que serão vinculantes para a administração tributária (Lei de Introdução, art. 30). É contrária a esse dever de ação positiva imposto pelo artigo 30 a postura, infelizmente comum, de a autoridade tributária admitir na prática, durante anos, certa interpretação da legislação tributária, adotada às claras pelos contribuintes, para depois renegá-la alegando que jamais a consagrou em norma ou decisão geral. O administrador tem agora, em função do art. 30 da Lei de Introdução, o dever expresso de agir, a tempo e hora: se a aplicação da norma tributária admitir ou suscitar interpretações contraditórias, quem tem o dever de instaurar segurança é a administração tributária, afirmando em público e com clareza sua recusa das interpretações a seu ver inadequadas. Se não o fizer, quando intervier no futuro terá perdido legitimidade para censurar ou onerar, com efeitos para o passado, quem confiou em seu silêncio.
Essas autoridades também estão sujeitas ao art. 29, que trata sobre a realização de consulta pública para a edição de regulamentos (tributários, neste caso) e sobre seus requisitos. É mesmo surpreendente que, estando há muitos anos os processos administrativos de consulta pública bem estabelecidos no campo da regulação administrativa – e sendo reconhecido que a falta deles, e a consequente omissão da administração em ouvir previamente os potenciais atingidos pela norma, afeta o regular exercício da competência normativo-administrativa – no campo tributário ainda se editem normas de grande repercussão sem qualquer transparência. A ausência de consulta pública, e de ampla discussão de todos os aspectos envolvidos, impede a adequada motivação da norma administrativo-tributária e tende a gerar obscuridades que, por mínimo dever de coerência, terão de ser interpretadas contra a administração.
O art. 28 trata da responsabilidade funcional dos agentes públicos por dolo ou erro grosseiro, incluindo os agentes que atuam no campo tributário, que também têm de ser protegidos contra a tendência, de certos controladores, em pretender a responsabilização objetiva de agentes administrativos.
Os processos administrativos e judiciais em matéria tributária, se forem causa direta de benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos, darão ensejo a compensação estabelecida quando da conclusão do processo (art. 27).
A eliminação de irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação de norma tributária poderá ser objeto de compromisso celebrado pelos interessados com a autoridade tributária, observada a legislação tributária aplicável e as demais regras do art. 26.
O art. 24 proíbe que a administração tributária dê aplicação retroativa a nova interpretação sobre a legislação tributária, de modo que nenhuma revisão de validade de ato singular da autoridade (o lançamento, por exemplo) pode ser feita por mudança da orientação geral a respeito. Aliás, como se sabe, a proibição da irretroatividade da nova intepretação vai além dos simples casos de invalidação de atos administrativos, pois está prevista em termos amplos na Lei Federal de Processo Administrativo (art. 2º, parágrafo único, XIII) e no Código Tributário (art. 100, II, III e paragrafo único, e art. 146).
Quando a administração tributária estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma tributária de caráter indeterminado, o art. 23 assegura para o contribuinte um regime de transição, na medida do necessário para impedir efeitos indevidos (desproporcionais, não equânimes, ineficientes ou contrários aos interesses gerais).
O art. 22, já mencionado, baliza a dosimetria das sanções também no campo tributário.
Pelo art. 21, a invalidação de atos, ajustes, processos e normas administrativas em matéria tributária, além de sujeita ao requisito formal quanto à expressa definição de suas consequências jurídicas e administrativas, também está limitada, quanto a seus efeitos, pela proibição de causar aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função da peculiaridade do caso, sejam anormais ou excessivos.
Por fim, o art. 20, como referido, cria dever especial quanto à motivação de atos e sentenças em matéria tributária, quando calcados em valores jurídicos abstratos.
Em suma, o direito tributário, por ser ramo do direito público cuja aplicação primária é da administração pública, está integralmente sujeito aos arts. 20 a 30 da Lei de Introdução reformada. E todos os órgãos administrativos com competência na matéria, inclusive judicante, têm o dever de respeitá-los com fidelidade.
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CARLOS ARI SUNDFELD – Professor Titular da FGV Direito SP
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