Por Adriano Rodrigues de Moura e Glaucia Lauletta Frascino
Poucos acreditavam que o STF manteria entendimento anteriormente manifestado e concluiria pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da Contribuição ao PIS e da COFINS. Isso aconteceu em março de 2017, em um caso gravado com repercussão geral, e fez nascer, a partir daí, uma das principais discussões tributárias da década.
Não nos referimos à discussão de mérito, pois essa nasceu muito antes. Falamos da controvérsia em torno da aplicabilidade e efetividade do julgado, especialmente se considerarmos a tentativa da Procuradoria da Fazenda Nacional de mitigar seus efeitos, seja com a sua modulação, seja com a limitação do valor a excluir ao ICMS recolhido. Ambos temas objeto de embargos de declaração opostos pela União e cujo julgamento está pautado para 5 de dezembro de 2019.
A par disso, a partir do julgamento de março de 2017, as consequências começaram a se materializar. Explicamos.
Por parte dos juízes e tribunais, que, quase à unanimidade, passaram a aplicar o entendimento pela inconstitucionalidade aos casos concretos, os quais, apesar dos muitos recursos interpostos pela União, começaram a ser definitivamente decididos.
Por parte dos contribuintes, que, mediante decisões definitivas, passaram a reconhecer os créditos em seus resultados e, inclusive, submeter à tributação a receita aferida.
Por parte da Procuradoria, que, além dos infindáveis recursos, ingressou com embargos de declaração no leading case perante o STF, requerendo não só a modulação de efeitos, mas o esclarecimento quanto a qual ICMS deveria ser excluído, se o recolhido ou o destacado.
E, finalmente, por parte da Receita Federal do Brasil, que, ignorando todos os demais movimentos, não somente consolidou sua interpretação por meio da Solução de Consulta Cosit 13, como a normatizou quando da recentíssima edição da Instrução Normativa 1.911, de 15 de outubro de 2019.
Realmente, a norma recém-publicada determina que “para fins de cumprimento das decisões judiciais transitadas em julgado que versem sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, devem ser observados os seguintes procedimentos: (…) o montante a ser excluído da base de cálculo mensal das contribuições é o valor mensal do ICMS a recolher”.
Mas, afinal, em quem devemos confiar? Na Procuradoria, que levanta a dúvida sobre qual ICMS deve ser excluído (o recolhido ou o destacado?) e justifica, assim, a oposição de embargos de declaração? Ou na Receita, que parece não vislumbrar a dúvida ou obscuridade que a própria Procuradoria apontou nos embargos, normatizando a sua interpretação por meio da recente instrução normativa?
Mais do que isso: qualquer indivíduo que lida com tributação corporativa no país sabe que essa matéria será enfrentada pelo STF. E que há chances reais do Tribunal apontar o ICMS destacado (afinal, o “verdadeiro” ICMS) como aquele passível de exclusão.
Quer nos parecer que, diante dessas circunstâncias, a Receita tenta transformar em fato consumado — a exclusão do ICMS recolhido, não do destacado — algo que ainda é incerto aos olhos da própria Procuradoria. Até porque, se a decisão de março de 2017 não contivesse omissão ou obscuridade, os embargos de declaração não seriam nem necessários, nem cabíveis.
A Procuradoria e a Receita são braços da União que, por décadas, exigiu valores indevidos, conforme reconhecido pelo próprio STF. Deveriam, para falar o mínimo, procurar ter um entendimento uno sobre a matéria, senão por outra razão, mas principalmente em prol da moralidade administrativa e da segurança jurídica.
Em resumo: os procedimentos da Procuradoria, quando da oposição de embargos, e da Receita, com a publicação da IN 1.911/2019, são contraditórios, pois ou bem temos dúvida e/ou omissão quanto a qual ICMS excluir, ou bem a questão já foi elucidada pelo STF, sendo incabíveis os aclaratórios.
Para além da incongruência verificada entre Receita e Procuradoria, análise isolada do posicionamento da RFB igualmente não confere suficiente clareza ao contribuinte sobre qual será a posição do Fisco na prática.
Isso porque, tanto na Solução de Consulta COSIT 13/2018, quanto na recém editada IN 1.911/19, a Receita Federal do Brasil expõe seu entendimento sobre a forma de quantificação do ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS/COFINS, no contexto do cumprimento de decisões judiciais transitadas em julgado.
Na citada Solução de Consulta, esse fato foi apontado expressamente como limitador do escopo daquela consulta: “O núcleo da consulta formulada demanda qual o procedimento a ser adotado para cumprir as decisões judiciais transitadas em julgado que versem sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins”.
O parágrafo único, do artigo 27, da recém-editada IN 1.911/19 possui semelhante redação: “Para fins de cumprimento das decisões judiciais transitadas em julgado que versem sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, devem ser observados os seguintes procedimentos: […]”.
Tem-se, pois, suficiente delimitado o alcance dessa norma apenas ao cumprimento de decisões judiciais transitadas em julgado. A questão que se coloca é: qual será a posição da RFB em relação ao grande número de contribuintes que, apesar de estarem protegidos por decisão judicial vigente que os autoriza a excluir o ICMS da base das contribuições, ainda não possuem a definitividade do provimento jurisdicional transitado em julgado?
Em outras palavras, os contribuintes que passaram a excluir o ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS em sua apuração regular, protegidos por decisão judicial vigente, ainda que não transitada em julgado, poderão sofrer retaliações por parte do Fisco Federal.
A intuitiva resposta é que o entendimento manifestado na Solução de Consulta e na Instrução Normativa não seria aplicado a esses contribuintes, haja vista a clara limitação do escopo da norma: “Para fins de cumprimento das decisões judiciais transitadas em julgado”.
Não é o que se vê na prática. É cada vez mais frequente a intimação dos contribuintes, inclusive os que ainda não estão amparados por decisão judicial transitada em julgado, para explicitarem à RFB qual o ICMS (destacado ou líquido) que vem sendo excluído da base de cálculo das contribuições.
Na mesma linha, a edição da Versão 3.1.0 do Programa EFD-Contribuições trouxe a inserção de campos específicos para o contribuinte individualizar o ICMS que vem sendo deduzido do PIS/COFINS.
Esses movimentos indicam certa tendência da RFB de se atentar, não apenas ao cumprimento de decisões judiciais transitadas em julgado, como indicam as referidas Solução de Consulta e Instrução Normativa, mas também para aqueles contribuintes que, gozando de decisão judicial vigente, passaram a excluir o ICMS da base de cálculo das contribuições da sua apuração mensal.
Os contribuintes esperaram por décadas, resilientemente, a apreciação da inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da Contribuição ao PIS e da COFINS. Não fará mal às autoridades tributárias agir com a mesma resiliência, aguardando que os embargos de declaração sejam finalmente apreciados.
E que demonstrem seriedade e fair play tão logo sejam feitos os devidos esclarecimentos pelo STF, quando do julgamento dos embargos de declaração.
Fato é que, diante de tantas dúvidas e incertezas, a edição de normas e a formalização de interpretação ainda não avalizada pelo STF não contribui em nada com o adequado deslinde da discussão e só colabora com a sensação de insegurança e inconsistência que permeia a tributação no Brasil. Trata-se de mais um capítulo de uma longa história.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 25 de outubro de 2019, 6h09