Com o advento da lei 11.101/05, restou inaugurada nova concepção do instituto reservado à reestruturação do passivo das empresas em estado de calamidade financeira, de forma a afastá-las, em última análise, da temida decretação de falência e cessação de suas atividades.
Nesta perspectiva, é com o início da vigência da lei de recuperações judiciais e falências que o já conhecido princípio da preservação da empresa recebe moldes de aplicação prática, de certa maneira inspirado pelos princípios fundamentais da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, trazidos pela Constituição Federal de 19881.
Decerto que o princípio em questão se encontra presente em diversos dispositivos da Lei de Recuperação de Empresas, porém, recebe melhor descrição e previsão no artigo 47 desta, o qual dispõe:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Pela dicção do referido dispositivo, resta cristalino que fora a intenção do legislador criar um instituto que corroborasse à função social das empresas, porquanto geradoras de empregos, riquezas que representam porção significativa na arrecadação de tributos. Por este motivo é que o princípio da preservação da empresa assume caráter de norma de ordem pública e de relevante interesse social, porquanto inerente aos interesses de uma coletividade, por vezes interessada na conservação da atividade empresarial, haja vista que se beneficiam da sua capacidade econômica tanto credores, quanto empregados, consumidores e o Fisco, em virtude da arrecadação de tributos.
E é em função desta relevância, que o Judiciário pátrio, por vezes, utiliza-se deste princípio para solução de temas e lides instauradas, costumeiramente, no decorrer do processo de recuperação judicial, tais como: a competência do juízo recuperacional para análise de atos que impliquem em restrição patrimonial em se tratando de execução fiscal; e a dispensa da apresentação das certidões de regularidade do recolhimento dos impostos pelas empresas que objetivam a recuperação judicial.
Ocorre que referido princípio, ainda que valioso para o fim social, não é absoluto, sendo que frente à determinadas situações sua aplicação deve ser necessariamente mitigada.
Neste contexto, conforme disposição expressa do art. 49, §3º, da já citada lei de regência2, credores titulares de créditos não sujeitos à recuperação judicial, via de regra, não estariam impedidos de perseguir seus respectivos créditos, seja por meio de ações autônomas ajuizadas em face da empresa em recuperação, ou por meio de retenções e amortização dos créditos em conta vinculada, tal como ocorre com as Instituições Financeiras.
Excepciona a regra acima exposta, contudo, necessário fazer ressalvas à venda ou retirada do estabelecimento do devedor dos “bens de capital” essenciais a sua atividade empresarial, isto durante o prazo de “stay period” a que alude o art. 6º, §4º, da lei 11.101/05.3
Tem-se que é com relação aos créditos excluídos dos efeitos da recuperação judicial e os efeitos desta exclusão, que recaiam as principais lides instauradas no curso da recuperação judicial, de forma que o trabalho hermenêutico desempenhado no dispositivo em questão, além de recorrente e é de relevante interesse social, porquanto abrange parte considerável dos recursos em trâmite nos Tribunais Pátrios.
Assim, apesar da aparente simplicidade da norma, se melhor analisada, notar-se-á a presença de diversos institutos e termos técnicos que evidentemente dependem da utilização das mais diversas técnicas de interpretação jurídica. Para o fim, unicamente, de alcançar a intepretação que mais se aproxime ao sentido pretendido pelo legislador e que assegure a justiça almejada pela sociedade.
É neste sentido, que se sugere o estudo dos efeitos da exclusão dos créditos frente ao manto da recuperação judicial, sendo que, para este singelo artigo, abordaremos em poucas linhas os efeitos da aplicação do princípio da preservação da empresa frente ao credor titular de crédito garantido por propriedade fiduciária.
Conforme já mencionado, os efeitos da exclusão do crédito do manto da recuperação judicial é alvo de constante controvérsia entre os operadores do direito, porquanto discutido, a grosso modo, os limites do princípio da preservação da empresa em face dos credores titulares de créditos extraconcursais. Isto é, em se tratando credor titular de crédito extraconcursal, durante o prazo de “stay period”, caberia a esse prosseguir com atos de constrição e expropriação de bens das empresas em recuperação? E após superado o prazo de blindagem, seria possível estender os efeitos do referido período para além, inclusive, da aprovação do plano de recuperação judicial?
Para responder a tais questionamentos, é necessário analisar o que vem sendo decidido pelo STJ. A primeira seção da Instância Máxima do Direito Infraconstitucional, tem adotado entendimento no sentido de que o deferimento do processamento da recuperação judicial não suspende o curso das execuções fiscais (extraconcursais por natureza4), devendo prosseguir a execução perante a empresa em recuperação em sua plenitude.
Entretanto, para a mesma questão tem concluído de forma divergente a segunda seção do STJ5, uma vez que, em função do princípio da preservação da empresa, caberia ao juízo universal decidir acerca dos atos de alienação voltados ao patrimônio da empresa em recuperação, ainda que superado o prazo de blindagem.
Em que pese a corrente jurisprudencial adotada pela segunda seção do STJ, tem-se que merece críticas o entendimento consolidado na referida seção, eis que ao indicar a competência do juízo recuperacional para decidir sobre quaisquer atos de constrição do patrimônio do devedor, ainda que em diante de crédito de natureza extraconcursal, a fim de que este verifique eventual essencialidade do bem ou direito eventualmente constrito. Em verdade, tal corrente, apesar de privilegiar o princípio da preservação da empresa, acaba por vulnerar por completo o direito de propriedade do credor titular de crédito extraconcursal.
Note-se que, conforme já mencionado, o referido princípio não é absoluto, sendo que nos casos em que colida frontalmente com outro direito fundamental, tal como o direito à propriedade do credor, deverá ser necessariamente relativizado, a fim de que se evite a vulneração de um direito em detrimento de outro.
Neste sentido, é que impor a competência do juízo recuperacional para deliberar sobre a essencialidade de bens e direitos eventualmente constritos, ainda que decorrido o prazo de “stay period”, além de conceder ultratividade aos efeitos do período de blindagem a que alude o art. 6º, §4º, da lei 11.101/05, acarreta em verdadeira ampliação do conceito de essencialidade presente na referida lei, especificamente no art. 4, §3º, porquanto reservado expressamente aos denominados “bens de capital”. Conceito este, recentemente, pacificado pelo STJ por ocasião do julgamento do REsp 1758746/GO6.
Naturalmente, a empresa em recuperação judicial necessita de demasiada proteção legal, a fim de que se veja com capacidades plenas de retomada de operações e compromissos assumidos perante os credores, contudo, evidentemente que não a todo custo.
A empresa em recuperação judicial deve demonstrar possuir capacidade de superação da crise que atravessa, através da geração de riquezas e adimplemento de suas obrigações perante credores concursais e extraconcursais.
É por esta razão que, com o devido respeito, fazemos críticas à interpretação adotada pela segunda seção do STJ, uma vez que, a princípio, esta interpretação, ao nosso ver, não coaduna com a própria lógica do instituto da recuperação judicial, ao passo que concede verdadeiro salvo conduto às empresas que, por vezes, se utilizavam desta “proteção jurisprudencial” para permanecer inadimplentes ad eternum perante seus credores extraconcursais, valendo-se de suas garantias alienadas em caráter fiduciário, constantemente desgastados pelo uso, sem, contudo, importar-se na redução do saldo devedor perante aquele credor.
Partindo disto é que a interpretação que vem sendo adotada pela primeira seção do STJ7, melhor se amolda à lógica do Instituto da Recuperação Judicial, uma vez que limitada a atuação do princípio da preservação da empresa quando conflitante ao direito do credor extraconcursal, após superado o prazo de stay period e muitas vezes aprovado o plano de recuperação judicial em Assembleia Geral de Credores.
Caberia, então, ao gestor da empresa, ao administrador judicial, ao Judiciário e aos próprios credores com créditos sujeitos à recuperação judicial a fiscalização e análise da capacidade de empresa de real soerguimento e adimplemento do passivo fora e dentro da recuperação em sua integralidade, de forma a evitar seja privilegiada a má-fé ou incapacidade de gestão da empresa devedora, em detrimento do direito do credor excepcionado pelo legislador dos efeitos da recuperação judicial, por questões de relevante afetação no cenário macroeconômico nacional.
A controvérsia entre as duas seções, portanto, parece-nos que terá fim, tão logo ocorra o julgamento do REsp 1.694.316/SP e REsp 1.712.484/SP, afetados ao rito dos recursos repetitivos, uma vez que estará resolvida a questão de possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, a princípio, em sede de execução fiscal.
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1 Constituição Federal de 1988: "Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios…"
2 § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
3 4º Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.
4 Lei 11.101/05: Art. 6º, § 7º As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica.
5 CC 153473 / PR, rel. min. Luis Felipe Salomão; 2ª Seção, Julg.9/5/18; AgInt nos EDcl no TutPrv no REsp 1734468/PR, rel. min. Mauro Campbell Marques, 2ª Seção, Julg. 11/9/18; CC 145.027/SC, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 2ª Seção, Julg. 24/8/16.
6 Trava bancária de crédito oriundo de garantia fiduciária de empresa em recuperação não pode ser sobrestada. Acesso em 5/11/18.
7 CC 116.579/DF, rel. min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, Julg. 22/6/11; AgRg no CC 112.646/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, 1ª Seção, Julg. 11/5/11.
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Fonte: www.migalhas.com.br
*Giovanni S. Bravim é advogado do escritório CMMM – Carmona Maya, Martins e Medeiros Advogados.