Há poucos dias presenciamos a suspensão do mandato do Presidente do Senado Federal por uma decisão monocrática do ilustrado Ministro Relator da Suprema Corte, gerando impasse entre os dois Poderes, logo contornado pelo Plenário da Corte que decidiu pela aplicação do velho, esquecido e utópico princípio federativo que versa sobre independência e harmonia dos Poderes. Não somos, nem nunca fomos a favor da manutenção de pessoas ímprobas nos postos de comando. Mas, toda saída dessa situação anormal há de ser buscada na Constituição, tal qual ela se encontra redigida. A Constituição não pode ser moldada à vontade de cada governante por meio de emendas espúrias[1], muito menos inovada por via interpretativa por mais qualificado que seja o intérprete máximo. Alguns falam em intervenção militar, mais aí me lembro dos horrores da ditadura que ceifou vidas de terroristas e de inocentes de ambos os lados, militares e civis.
Ontem, li a surpreendente notícia de que o ínclito e inteligente Ministro Luiz Fux, que concilia seu tempo entre a desgastante atividade jurisdicional e a apaixonante missão de elaborar projetos legislativos, concedeu liminar para ordenar que o Senado Federal devolva à Câmara dos Deputados o projeto de Lei nº 4850/16 que versa sobre medidas de combate à corrupção, para que aquela Casa Legislativa reaprecie o texto em sua redação original, sem as emendas incorporadas, porque nas propostas legislativas de iniciativa popular não caberia emendas. Em outras palavras, nesses casos, o povo legislaria diretamente substituindo o Poder Legislativo que deverá se limitar a homologar a proposta legislativa popular, como aquela que resultou no inexequível texto normativo que manda destacar nas notas fiscais os valores dos diferentes tributos embutidos nos preços dos serviços e das mercadorias. Qual o efeito positivo dessa lei? Os contribuintes onerados por mais essa atividade burocrática estão simplesmente consignando valores de forma aleatória e contraditória, pelo que não servem nem mesmo para formulação de uma estatística.
Penso que a liminar não foi deferida com o costumeiro acerto. Para que dúvida não paire transcrevamos o art. 13 e parágrafos da Lei nº 9.709/98 que regulamenta o art. 14, III da Constituição que prevê a iniciativa popular:
Art. 13. A iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
§1º O projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto.
§2º O projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vicio de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação.
O projeto legislativo sob exame cumpriu os requisitos do caput do art. 13 que reproduz norma do § 1º, do art. 62 da CF. O § 1º é norma voltada para o autor da iniciativa popular, e não para os legisladores. Na verdade, no caso vertente, o autor do projeto é o Ministério Público que obteve o número suficiente de assinaturas dos eleitores. O § 2º visa não prejudicar o projeto de iniciativa popular por vício formal no pressuposto de que o cidadão não é necessariamente versado na técnica legislativa.
Estando em termos do projeto legislativo de iniciativa popular consoante as regras retrocitadas, a Câmara dos Deputados dará seguimento de conformidade com as normas do Regimento Interno, possibilitando apresentação de emendas. É o que prescreve o art. 14 que assim dispõe:
Art. 14. A Câmara dos Deputados, verificando o cumprimento das exigências estabelecidas no art. 13 e respectivos parágrafos, dará seguimento à iniciativa popular, consoante as normas do Regimento Interno.
Não há na lei, nem nos arts. 59 a 69 da Constituição que versa sobre o processo legislativo qualquer norma proibindo a apresentação de emendas ao projeto de lei de iniciativa popular, nem poderia ser de outra forma porque a vontade popular é representada pela Casa do povo que é a Câmara dos Deputados. Não há distinção entre projeto de iniciativa popular e o de iniciativa do parlamentar. À única distinção fica por conta da origem do projeto de lei que não poderá ser rejeitado por vício de forma, devendo o órgão competente do Legislativo aperfeiçoar a proposta legislativa do ponto de vista da técnica legislativa, quando for o caso. Em tudo o mais a proposta legislativa de iniciativa popular segue a tramitação normal prevista no Regimento Interno de cada Casa Legislativa.
Em todo caso é desejável que esse impasse gerado pela liminar do eminente Ministro Luiz Fux seja submetido ao exame do Plenário da Corte Suprema nos mesmos moldes do que ocorreu no caso de suspensão do mandato do Presidente do Senado, medida, aliás, já requerida pelo Senado Federal atingido em sua prerrogativa constitucional. Mantida a medida liminar, cujos termos extravasam dos limites contidos no próprio pedido inaugural formulado no mandado de segurança impetrado pelo singular Deputado Bolsonaro, sempre restará à Câmara dos Deputados rejeitar no mérito a propositura legislativa em questão, com o que ficaria restabelecida a normalidade legislativa, sem que possa o STF ordenar a sua aprovação.
Contudo, quando a poeira da confusão estiver se assentando poderá vir a cassação da chapa Dilma/Temer e teremos uma guerra na eleição indireta do novo Presidente. O STF poderá eventualmente ser chamado a intervir nesse processo eleitoral para botar a Casa em ordem. Uma liminar poderá interromper a votação e a crise político-institucional continuará. Tudo é possível nesse cenário anormal!
No que tange ao projeto legislativo que cuida das medidas contra a corrupção de iniciativa popular, só para exemplificar, é visível a estranheza do disposto no § 4º, do art. 63:
§ 4º no prazo máximo de 2 (dois) anos de vigência desta lei, serão afixadas placas visíveis em rodovias federais e estaduais, no mínimo a cada 50 (cinquenta) quilômetros e nos dois sentidos da via, as quais indicarão, pelo menos, o número telefônico, o site eletrônico e a caixa de mensagens eletrônica por meio dos quais poderá ser reportada corrupção de policiais rodoviários ao Ministério Público.
Esse § 4º parece ser fruto de uma vingança legislativa por quem eventualmente tenha sido vítima de arbitrariedade policial. Instrumento legislativo não deve ser manejado emocionalmente, nem se prestar a manchar a imagem dos integrantes de qualquer classe de servidores públicos. Seria mais proveitoso para a sociedade se colocassem placas contendo os nomes dos envolvidos na operação Lava Jato.
No mais, esse projeto legislativo de iniciativa popular mexe e remexe os dispositivos do CP e do recém inaugurado CPC.
Tamanho o número de produção legislativa nas três esferas políticas, irradiando normas dúbias e nebulosas que se prestam a todo tipo de interpretação, que o princípio da segurança jurídica foi para o espaço sideral. Não há operador de direito que consiga lidar com esse crescente fenômeno do dinamismo legislativo caótico que altera, por meio de um único diploma legal, ao mesmo tempo, a legislação especial e a legislação geral, tanto a antiga, quanto a recém sancionada.
Só para se ter uma ideia, o novo CPC foi alterado antes da sua entrada em vigor e continua sendo enxertado ou alterado constantemente. Esse novo CPC veio aumentar consideravelmente o número de controvérsias a serem dirimidas pelo Judiciário. No momento, os tribunais divergem em torno da uniformização do prazo de recursos que, com exceção dos embargos declaratórios, são de 15 dias. A grande questão é: aplica-se no âmbito penal? Esse tipo de discussão não havia no CPC antigo! O princípio da especialidade não mais serve como meio de solução de conflitos legislativos tamanha a mistura feita pelo legislador. Quando a jurisprudência consegue superar as divergências, entra em vigor um novo estatuto jurídico para alimentar a chamada jurisprudência defensiva, que possibilita ao Judiciário evitar a apreciação do mérito da demanda que dá muito trabalho e causa o emperramento do Justiça.
Outro dia, para concluir um parecer sobre o regime jurídico tributário das empresas em relação à CSLL tive que consultar inúmeras leis para saber que as cooperativas de crédito estavam sujeitas a uma alíquota diferenciada. Bastaria a lei dizer que as cooperativas de crédito estavam dentre as empresas que se sujeitam à alíquota de 20% no período de tanto a tanto, e de 15% a partir de tal data. Mas não, a lei se refere à pessoa jurídica referida no inciso X, do parágrafo Y, do artigo Z da lei número tal. Quando você compulsa essa tal lei, verifica-se que ela sofreu inúmeras alterações. Aí você perde um tempo considerável espalhando diversos textos legais sobre a sua mesa de trabalho para, a final, descobrir que o legislador quis estipular uma alíquota diferenciada para as sociedades cooperativas de crédito. Por que cargas d’água não diz isso diretamente? Lembro-me da piada de um português que esqueceu o nome da sua esposa durante um jantar oferecido a seus amigos. Para descobri-lo ele começou a perguntar aos presentes sobre as plantas que produzem diferentes espécies de flores. Depois de inúmeras respostas que vão desde lima da pérsia que produz efeito afrodisíaco, até certo tipo de hortaliça que depois de envelhecida, nos estertores da morte solta lindas flores, um dos ouvintes falou em rosa. Aí o descuidado marido abre um largo sorriso de criancinha travessa, agradece o comensal e dispara: Rosa, minha esposa querida traga cafezinhos para os meus amigos.
Mas, retornando à ideia central penso que é chegada a hora de propor uma PEC de iniciativa popular, proibindo a produção legislativa para os próximos 20 anos, excetuando os casos de segurança nacional e de relevante interesse econômico social.
Precisamos nos defender do mais perigoso inimigo da estabilidade da ordem jurídica e da segurança jurídica que está assegurada em nível de cláusula pétrea.
A produção indiscriminada de instrumentos normativos casuísticos configura uma forma disfarçada de corrupção, principalmente, no campo de direito tributário onde proliferam incentivos fiscais subjetivos de toda sorte que suprimem a arrecadação tributária em cerca de 300 bilhões de reais ao ano. A operação Lava Jato descobriu algumas medidas provisórias isentivas patrocinadas ao peso de ouro por alta autoridade da República. Só que a investigação policial não consegue descobrir o que está por trás de cada um dos milhares de benefícios fiscais aprovados aos borbotões de forma incessante e permanente. Se todos pagassem igual dentro dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva, a carga tributária poderia ser diminuída, e o país sairia da recessão econômica, mas isso não passa de uma utopia. Aliás, há uma relação direta entre quantidade de produção legislativa em geral com o grau de corrupção de um país. Muitas dessas leis representam um caminho aberto para a prática de atos de corrupção. Dificultar para colher benefícios, diz o velho ditado popular. As leis são elaboradas de tal forma que sempre comportam uma peninha para o servidor público deixar de atender de imediato a um pleito urgente do cidadão-contribuinte previsto na lei, aparentemente, com solar clareza, mas, que no fundo não passa de uma ilusão.
É preciso, também, uma outra PEC de iniciativa popular para redesenhar o decantado princípio da separação dos Poderes que decaiu com o passar dos tempos. O sistema de freios e contrapesos não passa de uma reminiscência histórica. Talvez, a mudança do sistema de governo para o parlamentar, como preconizado pelos autores da obra coletiva sob a coordenação geral de Ives Gandra da Silva Martins intitulada “Parlamentarismo Realidade ou Utopia” onde me incluo, ajude a superar essa questão do embate entre os Poderes.
Notas
[1] Até hoje 95 Emendas foram promulgadas. Centena de PECs estão em tramitação. Preservado o núcleo protegido por cláusulas pétreas tudo o mais foi alterado, mutilado ou substituído. Que segurança jurídica temos se a Lei das Leis muda a toda hora como alguém que muda de camisa?
Por Kiyoshi Harada
Fonte: tributario.com.br