É possível a dissolução parcial de uma sociedade anônima de capital aberto, por quebra da afeição/vontade dos sócios (affectio societatis), desde que a empresa opere como se fosse uma sociedade limitada. Afinal, numa sociedade limitada, prepondera a associação por afinidade pessoal (intuitu personae), em vez de uma associação visando unicamente o lucro e a distribuição de dividendos (intuitu pecuneae).
O fundamento levou a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a manter, na íntegra, sentença que acolheu pedido de dissolução parcial movido por um sócio minoritário contra uma companhia de tecnologia. Tal como o juízo de origem, os desembargadores, à unanimidade, entenderam que a dissolução por decisão judicial não se limita às circunstâncias elencadas no artigo 206, inciso II, da Lei das Sociedades Anônimas (6.404/76).
No caso, a empresa é uma sociedade anônima de capital aberto, registrada junto à Comissão de Valores Imobiliários (CVM), operando no mercado de balcão não organizado. Mas, de acordo com a decisão que permitiu a dissolução parcial da sociedade, na verdade, a companhia operava como se fosse de capital fechado, "uma vez que suas ações se mantêm eternamente ilíquidas e, na saída de sócio, congeladas quanto ao seu valor’’, disse o relator das apelações na corte, desembargador Luís Augusto Coelho Braga.
O advogado Eduardo Pretto Mosmann, da banca Pimentel & Rohenkohl Advogados Associados, que defendeu o autor, comemorou a decisão. ‘‘Pelo que conheço, a decisão é inédita no Brasil, pois envolve uma sociedade anônima de capital aberto. Até hoje, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a dissolução somente de S/As fechadas. Foi uma decisão bastante arrojada do TJ-RS’’, afirmou.
O caso
O litígio começou no ano 2000, quando o autor — dono de ações que perfaziam 0,6% do capital da empresa — foi destituído do cargo de diretor administrativo e financeiro, ingressando com reclamatória trabalhista na Justiça do Trabalho. Como obteve sucesso na demanda judicial, a sociedade empresária, em retaliação, passou a não lhe pagar os dividendos e juros sobre o seu capital. Isso causou animosidade entre os sócios e a quebra do affectio societatis, resultando na sua saída da empresa.
Para restabelecer seus direitos, o sócio minoritário ajuizou Ação de Dissolução Parcial de Sociedade Empresária e Apuração de Haveres Cumulada com Cobrança de Dividendos e Juros Sobre Capital Próprio na 1ª Vara Cível do Foro Regional do 4º Distrito, Zona Norte de Porto Alegre.
Na inicial, ele argumentou que a empresa ré não se caracteriza de fato como uma sociedade anônima aberta, pois embora esteja apta a negociar ações no balcão de mercado não organizado, isso nunca ocorreu. Ou seja, não há liquidez das ações, tal como numa sociedade anônima fechada. Em síntese, afirmou que se trata de sociedade formada em caráter familiar e pessoal, na qual o intuito personae prevalece sobre o intuito pecuniae, sendo possível a sua dissolução parcial e a apuração de haveres, com base no balanço especial, como determina o artigo 1.031 do Código Civil e a Súmula 265 do Supremo Tribunal Federal.
Em contestação, a ré alegou que o autor, depois do afastamento do cargo, não mais retirou seus dividendos e juros, que ficaram depositados em conta contábil, à sua disposição. No mérito, alegou a impossibilidade de dissolução parcial pela quebra do affectio societatis, por se tratar de sociedade anônima de capital aberto, sem caráter pessoal, com títulos mobiliários negociados no mercado de balcão. Nesse caso, a saída do acionista deveria se dar pela venda das ações, a fim de não inviabilizar a atividade da sociedade.
Sentença procedente
O juiz Daniel Henrique Dummer explicou que, a princípio, nem se cogitaria do deferimento da dissolução parcial requerida nos autos. Afinal, considerando que as S/As são sociedades de capital, pouco importa a relação entre os sócios, bastando a comercialização das ações para satisfazer a pretensão do acionista que pretende se retirar. Além disso, a Lei das Sociedades por Ações (6.604/76) não trata da possibilidade de dissolução parcial das companhias, somente de sua dissolução total. Legalmente, apontou, as restrições de retirada do sócio estão enumeradas no artigo 136, e a dissolução total nas hipóteses elencadas pelo artigo 206 — ambos da mesma lei. E, nestas, não se encontra o fim do affectio societatis.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a dissolução parcial de sociedade anônima pela quebra do affectio societatis quando ela for de capital fechado, com caráter familiar e pessoal. E estes dois últimos componentes, apesar de a companhia ser de capital aberto, também estão presentes no caso concreto, explicitado nos autos.
A prova, no entanto, revelou que a empresa tem elevado grau de iliquidez nas suas ações, nenhuma venda de ações nos últimos três anos e pequeno número de acionistas. E mais: as poucas vendas de ações se deram apenas entre pessoas ligadas a um grupo familiar ou empresarial. Além disso, um grupo cujo sócio majoritário detém a totalidade das ações ordinárias com poder de voto. Logo, não se trata de uma sociedade anônima aberta, ficando evidente o seu caráter fechado e pessoal.
‘‘Assim, os acionistas ficam impedidos de obter reembolso do investimento, mantendo o capital na empresa, em prol do sócio majoritário que, ao fim e ao cabo, é quem se beneficia da permanência e da soma do capital, sem valorizar as ações, enquanto o patrimônio líquido da empresa prospera em seu favor, já que não dispõe suas ações para venda no mercado mobiliário, sendo, notadamente, uma sociedade de caráter pessoal, justificando a dissolução parcial, com a apuração do real valor do capital investido pelo sócio minoritário’’, concluiu Dummer.
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Por Jomar Martins
Revista Consultor Jurídico, 22 de agosto de 2017, 16h30