A sabedoria popular bem sabe que não adianta apenas colocar em uma rodovia determinada placa com limite de velocidade se não houver alguém ou algo que identifique o carro que trafegar acima desse limite e, o mais importante, que dispare alguma sanção ao transgressor. Tão importante quanto fixar a velocidade máxima é assegurar eficiência ao sistema de punição para tornar crível a regra.
Ainda mais em tempos que se percebe e se experimenta descontrole das contas públicas no Brasil, as regras fiscais no Brasil enfrentam o desafio de se tornarem críveis.
A imposição de limites é uma óbvia exigência da realidade, além de ser uma decorrência estrutural do princípio da separação de poderes constante do artigo 2º da nossa Constituição. Prestes a completar 30 anos, ela criou algumas normas de contenção em seu corpo (exemplo da chamada regra de ouro para limitar o financiamento estatal via operações de crédito), inovou ao abrir espaço para leis complementares nacionais e abrangentes (como a da Responsabilidade Fiscal), ainda previu outras que nunca foram regulamentadas (caso clássico dos limites ao endividamento da União), ou chegou a ser emendada para criar limites provisórios e duros para conter crescimento da despesa pública primária federal (o chamado teto de gasto).
A despeito disso, muitos desses esforços para racionalizar legitimamente a alocação dos escassos recursos estatais e a gestão pública no Brasil têm esbarrado — em maior ou menor grau — no descumprimento, falseamento ou simplesmente ausência de balizas sobre três grandes pilares para a sustentabilidade intertemporal das contas públicas.
Referimo-nos, em particular, à precariedade na fixação e exigibilidade de limites para o fomento (ao mercado ou ao terceiro setor) por meio de renúncias fiscais e créditos subsidiados, para as despesas com pessoal (ativo e inativo) e para a dívida pública mobiliária e consolidada federal. Sem equacionar adequadamente esses três grandes fluxos, historicamente o saldo de desequilíbrio fiscal reverbera em pressão inflacionária e em majoração da carga tributária ou do endividamento público.
Nas últimas cinco décadas, vimos diversos diplomas normativos pautarem, direta ou indiretamente, tal debate. Problema, contudo, reside tanto naquilo que foi omitido, quanto naquilo que mesmo tendo sido previsto, sujeitou-se a uma frágil, seletiva e errática aplicação pelos órgãos de execução e controle. Em meio ao caos fiscal pelo qual o país passa, precisamos reconhecer e questionar a considerável cota de responsabilidade omissiva e comissiva do nosso sistema de freios e contrapesos.
Para exemplificar esse desbalanceamento na previsão e na exigibilidade de limites, resgatamos aqui alguns esforços empreendidos no Decreto-Lei 200/1967, na Constituição de 1988, na Emenda 19/1998 e na Lei de Responsabilidade Fiscal, os quais, a bem da verdade, foram reiterados — bem ou mal — pela Emenda 95/2016 e mais recentemente na LDO federal para 2019.
Avaliação de desempenho, para fins de controle de pessoal ocioso e de produtividade mínima dos servidores públicos, é algo que ainda hoje soa quimera, mas que existe em nosso ordenamento há mais de 50 anos, tal como preveem os artigos 94 e 95 do Decreto-Lei 200/1967[1]. Não obstante isso, o inchaço da folha de pagamento e o impasse da expansão desordenada do gasto com pessoal ativo e inativo são realidades que se impõem conflituosamente[2] a todos os entes da federação e a todos os poderes da República.
Por outro lado, a necessidade de regulamentar o regime jurídico da dívida pública federal consta da redação originária da Constituição de 1988, nos seus artigos 48, XIV e 52, VI, mas, até os presentes dias, a trintenária omissão[3] é uma escolha legislativa que avilta o nosso ordenamento. Não se pode ignorar o fato de que as lideranças dos governos no Senado, independentemente do mandato ou ideologia, nunca tiveram interesse em aprovar tal medida (inclusive por muito tempo o próprio relator era o líder do governo).
A Emenda 19/1998 retomou, dentre outros aspectos, os problemas da expansão vertiginosa da despesa com servidores ativos e inativos e também da falta de avaliação de desempenho deles. Os artigos 41 e 169 da Constituição foram alterados, buscando avançar em novas estratégias de controle, inclusive com as hipóteses de demissão por insuficiência de desempenho e dispensa de servidores estáveis por excesso de gasto com pessoal.
Paralelamente ao debate sobre o gasto total de pessoal, foram empreendidas, nos últimos 20 anos, não menos do que quatro emendas constitucionais que incidiram sobre o regime próprio de previdência dos servidores públicos (ECs 20/1998, 41/2003, 47/2005 e 88/2015). É curioso que o Executivo Federal, para flexibilizar a rolagem da dívida estadual, exigiu que as demais unidades federadas elevassem e fixassem em 14% a alíquota da contribuição previdenciária, mas a própria União não adotou a regra, uma vez que, conquanto tenha chegado a editá-la, teve sua eficácia suspensa de pronto por liminar do STF, mas para qual o governo nunca se empenhou muito em reverter (mas, ainda assim, continua a cobrar que outras unidades federadas passem a cobrar o que o governo central não realiza).
Em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101) fixou horizontes limítrofes de controle não só para as despesas de pessoal (artigos 18 a 23), como também pautou prazo para a regulamentação necessária em relação aos limites da dívida pública consolidada de todos os entes da federação e da dívida mobiliária federal (artigo 30). Some-se a isso o fato de a LRF haver balizado o regime jurídico das renúncias fiscais (artigo 14), despesas obrigatórias de caráter continuado (artigo 17), despesas com a seguridade social (artigo 24), assim como parametrizou critérios inafastáveis para quaisquer destinações de recursos públicos para o setor privado, inclusive na forma de subvenções e créditos subsidiados (artigos 26 a 28).
Não nos parece, portanto, que o Brasil viva sob a égide da escassez de normas. Tampouco houve grandes e abruptas alterações de sentido dos comandos normativos que tentaram promover o equilíbrio intertemporal entre receitas e despesas públicas. Por paradoxal que pareça, a tendência que aqui analisamos é a de repetição — com maiores detalhamentos e busca de contenção das brechas — em busca de reforço recíproco desde o Decreto-Lei 200/1967 até a Emenda 95/2016.
Merece destaque, a esse respeito, o fato de que controle das despesas com pessoal (ativo e inativo) e controle das renúncias fiscais[4] são eixos que seguem sistematicamente descumpridos, a despeito de eles terem sido reforçados no “Novo Regime Fiscal”[5] e mesmo na LDO federal para o exercício de 2019[6]. Tal repetição apenas nos parece entoar o grito desesperado da tragédia farsesca das promessas descumpridas por equilíbrio fiscal minimamente equitativo, cuja maior omissão, aqui insistimos, refere-se à falta de regulamentação dos limites da dívida pública federal.
Por vezes, a defesa de novas reformas e mais rigorosos diplomas normativos atende meramente ao propósito de ocultamento das causas estruturais que lastreiam o impasse, como se fosse possível resolvê-lo apenas por “decreto” ou por sua simples postergação. Ora, a iminente ruptura franca da “regra de ouro” a que se refere o artigo 167, III da Constituição e o descrédito fático com o teto fiscal da Emenda 95 são contextos que bem evidenciam que não há soluções fáceis ou milagrosas para problemas antigos e complexos.
Para que possamos superar toda e qualquer remota ilusão com o caráter autoexecutável das regras e princípios de responsabilidade fiscal, precisamos apontar o foco para uma das nucleares causas desse quadro de recalcitrante desajuste fiscal: por que as instâncias de controle não têm se ocupado de responsabilizar quem infringe as normas? Quem vigia o cumprimento da responsabilidade fiscal é fiscalmente responsável?
Nos quase 30 anos de vigência do nosso marco constitucional, algo efetivamente falhou no sistema de freios e contrapesos, quando se percebe que nem sempre os Poderes (ainda mais os que legislam, fiscalizam e julgam) se importam adequada e satisfatoriamente com os limites dados pelo ordenamento pátrio para as contas públicas.
No caso do Congresso, o debate e a aprovação de novas normas relativas a incentivos fiscais e a outras despesas obrigatórias de caráter continuado precisam, na perspectiva histórica, ser coerentes com a sua produção normativa delimitadora de fronteiras fiscais máximas. O paradoxo do artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é apenas um sinal do desequilíbrio entre os poderes. No caso dos tribunais de contas[7] e dos Ministérios Públicos[8], não faltam notícias de como tomaram a iniciativa de adotar interpretações flexíveis para cumprimento do limite de gasto com pessoal da LRF. O que tem sido agravado pelo Judiciário expandir seus gastos acima do teto constitucional[9].
O dever de sujeição aos limites fiscais não é usualmente atribuído ao Parlamento (particularmente vocacionado a “farras fiscais” e “pautas-bomba”[10]) e o Judiciário ainda reluta absorvê-lo em sua amplitude empírica[11]. Ora, se o sistema de freios e contrapesos da nossa República opera sob fortes incentivos (inclusive no âmbito dos tribunais de contas[12]) para não funcionar adequadamente[13], as instâncias de controle acabam por se deixar aprisionar em teias de insulamento burocrático para atender a pressões setoriais, corporativas e, quase sempre, tendentes ao comportamento rent seeking[14].
As instâncias de controle devem ser as primeiras a dar o exemplo e mostrar que respeitam as boas práticas fiscais, sem recorrer, por exemplo, a medidas atípicas para esconder o verdadeiro tamanho de suas folhas salariais. Só assim poderão ter isenção e firmeza para avaliar e denunciar irregularidades cometidas pelos outros poderes.
Já vai longe a criatividade para interpretar regras e relaxar ou driblar seu cumprimento[15], tendo se chegado ao ponto de justificar um impeachmentde presidente da República por conta das manobras orçamentárias e financeiras indevidas que seu governo adotou. Porém, é grave constatar que nenhuma mudança legislativa foi aprovada após esse ato político extraordinário (embora fossem precisos muito menos votos) para mudar dispositivos legais ou para corrigir a interpretação que permitiram os equívocos cometidos pela ex-presidente. A sanção máxima do crime de responsabilidade não pode ser vista como algo corriqueiro para punir desvios, que, antes de tudo, devem ser evitados. É mais importante evitar que a porta seja arrombada do que apenas punir quem a arrombou — até porque isto normalmente demora muito a ser feito e, como temos aqui visto, nem sempre se faz de forma eficiente e suficiente.
Ou se instaura um ciclo virtuoso de vigilância republicana em prol do cumprimento das balizas constitucionais e legais que visam ao equilíbrio das contas públicas, ou o sistema de freios e contrapesos brasileiro — por estar ele próprio desbalanceado — seguirá tendente a agravar o desajuste fiscal, sem poder adiar muito mais o debate do quanto custa para a sociedade suas ações e omissões.
O que há de novo nesse árduo campo de reflexões e conflitos distributivos é o desvendamento da premência dos fatos e das demandas sociais impactadas pelo congelamento nas despesas primárias trazido pela Emenda 95/2016. Afinal, quem, em última instância, vigia o vigilante é sempre a sociedade.
Revista Consultor Jurídico
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