No dia 20 de setembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, por meio do Plenário Virtual, conforme previsão autorizativa em seu Regimento Interno,[1] proferiu decisão de mérito no RE 765.320 (com repercussão geral reconhecida), a qual, a pretexto de reafirmar sua própria jurisprudência, promoveu, na verdade, equivocada modificação do entendimento pretérito, contrariando toda a lógica do sistema normativo dos regimes estatutário e celetista, para instituir novel situação jurídica. O grave equívoco pode, mais uma vez, causar danos bilionários às já combalidas finanças dos Estados-membros, uma vez que “não existe governo grátis”.
Trata-se do caso do “direito de levantar depósitos de FGTS em casos de nulidade de contratação realizada pelo Estado”, por aplicação do artigo 37, § 2º, da CRFB/88 combinado com artigo 19-A da Lei 8.036/90 (Lei do FGTS) — este, incluído apenas em 2001 pela MP 2.164-41. A ementa do acordão, relatado pelo ministro Teori Zavascki, assim dispôs: “a contratação por tempo determinado para atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público realizada em desconformidade com os preceitos do artigo 37, IX, da Constituição Federal não gera quaisquer efeitos jurídicos válidos em relação aos servidores contratados, com exceção do direito à percepção dos salários referentes ao período trabalhado e, nos termos do artigo 19-A da Lei 8.036/1990, ao levantamento dos depósitos efetuados no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).”
Observe-se, com atenção aos excertos grifados, o que prescreve o citado artigo da Lei do FGTS:
“Art. 19-A. É devido o depósito do FGTS na conta vinculada dotrabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado nulo nas hipóteses previstas no art. 37, § 2º, da Constituição Federal, quando mantido o direito ao salário.
Parágrafo único. O saldo existente em conta vinculada, oriundo de contrato declarado nulo até 28 de julho de 2001, nas condições docaput, que não tenha sido levantado até essa data, será liberado aotrabalhador a partir do mês de agosto de 2002.”
No caso julgado, que envolvia servidor admitido em caráter provisório e excepcional (sem concurso público) para desempenhar a função de oficial de apoio judicial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o que se tem é:
a) não há “contrato de trabalho” declarado nulo: o autor nunca foi contratado pelas regras da CLT, mas, sim, sob regime administrativo, previsto em lei estadual (Lei 10.254/90), como era de seu conhecimento, tendo a contratação, no entanto, sido considerada nula pelo Poder Judiciário (afronta ao artigo 37, §2º, da CF/88);
b) ora, se o regime de contratação não era o da CLT, não há falar em “salário”;
c) por isso mesmo, nunca houve recolhimento de FGTS pelo Estado, o que somente se verifica nas contratações realizadas sob o regime da CLT, ainda que posteriormente declaradas nulas (por inobservância ao artigo 37, §2º, da CF/88);
d) logo, não há “saldo existente de FGTS” e “ainda não levantado” em data alguma, como seria de se supor pela leitura do parágrafo único do artigo 19-A da Lei do FGTS, ou seja, não há o que levantar.
É o próprio ministro relator que escreve, em seu voto-condutor, que o artigo 19-A da Lei 8.036/90 se aplica a contratos de trabalho celebrados entre a Administração Pública e seus empregados:
“… na apreciação do RE 705.140 (de minha relatoria, Tribunal Pleno, DJe de 5/11/2014, Tema 308), submetido à sistemática da repercussão geral, assentou-se a aplicação do art. 19-A da Lei 8.036/1990 aoscontratos de trabalho nulos firmados pela Administração Pública. A Constituição de 1988 comina de nulidade as contratações de pessoal pela Administração Pública sem a observância das normas referentes à indispensabilidade da prévia aprovação em concurso público (CF, art. 37, § 2º), não gerando, essas contratações, quaisquer efeitos jurídicos válidos em relação aos empregados contratados, a não ser o direito à percepção dos salários referentes ao período trabalhado e, nos termos do art. 19-A da Lei 8.036/90, ao levantamento dos depósitos efetuados no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS.”
O STF está claramente a confundir “alhos com bugalhos”. Uma coisa é considerar nulo, por ausência de concurso público, a contratação sob o regime da CLT, em que, além do pagamento de salários (e outras verbas, como férias e 13º), são (foram ou deveriam ter sido) efetuados depósitos a título de FGTS. Nesse caso, considerado nulo o contrato, o empregado (já que contratado segundo as regras da CLT) tem direito aos salários (referentes ao período trabalhado) e a “sacar o FGTS” (leia-se: levantar o que fora depositado). Outra coisa, totalmente diferente, é o contrato firmado sob o regime administrativo, com base em lei estadual, que é, porém, considerado nulo por não ter sido realizado o certame. No curso dessa segunda relação, não houve — e jamais deveria ter havido — qualquer ato de “depositar o FGTS”. Daí por que não há nada para sacar/levantar, diversamente do que ocorre na primeira relação, sob a CLT, em que houve (ou, ao menos, deveria ter havido) o depósito, podendo ser liberado ao trabalhador celetista.
Dos precedentes jurisprudenciais colacionados no RE 765.320, os mais relevantes, sendo sempre lembrados, são o RE 658.026, o RE 596.478 e o RE 705.140. Em todos eles, o tema enfrentando cingiu-se a uma hipótese diversa do julgamento do servidor temporário do TJ-MG. Aqueles três julgados versaram unicamente sobre contratos nulos firmados sob o regime da CLT(não sob o regime administrativo). E por se tratar de contratos empregatícios, regidos pela CLT, havia depósito de FGTS passível delevantamento, como permite a letra do artigo 19-A da Lei 8.036/90.
Já nas ADIs 2.229 e 3.127, também citadas, tem-se o seguinte: na primeira, foi examinada apenas a inconstitucionalidade de lei estadual que admitia a contratação temporária de defensor público (o que implicou a nulidade da contratação, inclusive pelo caráter permanente da atividade); na segunda, foi decretada a constitucionalidade do artigo 19-A da Lei do FGTS, por permitir o recolhimento dos valores no caso de emprego público, sendo devido mesmo quando o ingresso do empregado público não observa o regime do concurso público. Ainda que superficialmente, é possível constatar que nenhuma dessas ações diretas de inconstitucionalidade abordou a incidência de FGTS no regime de contratação temporária estatutária.
Ou seja, o STF aplicou precedentes completamente inadequados ao caso do servidor temporário do TJ-MG, em que o que se tinha era um contratoadministrativo, posteriormente declarado nulo por ausência de concurso público. O correto seria aplicar à espécie a regra do art. 39, § 3º, da CRFB/88 (incluído pela EC 19/98), que não prevê qualquer direito a FGTS: “Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no artigo 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.”
Tivessem os julgadores procedido à necessária diferenciação entres casos — o que os ingleses denominam de distinguish(ing) —, esse erro teria sido facilmente evitado. Muito mais acertada foi uma decisão recentemente prolatada pela 1ª Turma do TJ-MG, evidenciando o desacerto do STF:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE COBRANÇA. SERVIDOR TEMPORÁRIO ESTADUAL. AGENTE DE SEGURANÇA PENITENCIÁRIO. CONTRATOS CELEBRADOS DE FORMA SUCESSIVA. FGTS. IMPOSSIBILIDADE.
– A nulidade da contratação temporária não convola o regime jurídico-administrativo em celetista, e, por conseguinte, não é devido o FGTS.
– O julgamento realizado pelo STF no RE n. 705.140 não é aplicável ao servidor temporário quando está provado que a contratação se deu pelas regras do regime jurídico-administrativo. (TJMG – Apelação Cível 1.0024.14.250532-0/001, Relator(a): Des.(a) Alberto Vilas Boas, 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/09/2016, publicação da súmula em 26/09/2016)
De fato, é de todo impensável conceber a concessão de FGTS a quem não foi nem nunca poderia ser (em razão da nulidade do contrato) empregado. FGTS é direito devido apenas a quem tem relação empregatícia, em conformidade com a CLT, e nunca ao servidor (temporário ou não), que se vincula à administração pública por contrato administrativo (ainda que venha a ser nulificado).
Por via indireta, o STF passou a reconhecer uma impossibilidade jurídica:relação empregatícia com o Estado (!), porquanto FGTS é direito exclusivo de empregado (público ou privado).
Toda essa triste narrativa só reforça o valor da Teoria dos Precedentes, especialmente após a entrada em vigor do novo CPC (Lei 13.105/15), o qual atribuiu força vinculante aos padrões decisórios. Mas desde que o recurso aos precedentes judiciais sirva a uma jurisprudência racional, estável, íntegra e coerente (artigo 926), por meio da aplicação legítima, eficiente, discursiva e fundamentada da ratio decidendi (que é o elemento vinculante), e não à utilização mecanizada de entendimentos isolados e sumulados. Aí está a importância da análise jurisprudencial cuidadosa, sendo de responsabilidade dos juízes atentar para as peculiaridades do caso.
Foi essa preocupação, aliás, que levou uma equipe de mais de trinta pesquisadores no âmbito da Universidade Federal de Minas Gerais — incluindo dois dos autores deste texto — a conduzir, com apoio financeiro do CNJ, “uma investigação empírica da prática de se seguirem precedentes judiciais e súmulas no direito brasileiro, com vistas a revelar a compreensão que o Poder Judiciário — em suas diversas ramificações entre regiões e em razão da matéria — tem do precedente judicial e do direito jurisprudencial.” O relatório final, intitulado A Força Normativa do Direito Judicial: Uma Análise da Aplicação Prática do Precedente no Direito Brasileiro e dos Seus Desafios para a Legitimação da Autoridade do Poder Judiciário e publicado em 2015,[2] identificou, por meio de um estudo minucioso de inúmeras decisões e votos em diferentes instâncias, com ampla coleta de dados, acompanhamento in loco de processos e realização de entrevistas com juízes, desembargadores, assessores e partes, uma série de problemas na aplicação de precedentes e súmulas pelo Poder Judiciário brasileiro, concluindo, entre outras coisas, que:
“O problema que demanda solução mais urgente, no entanto não se encontra nas técnicas mencionadas acima, mas na delegação de competências, existente no âmbito do STF. O distinguishing e a comparação de casos estão sendo feitos por meio de um simples carimbo, sem uma reflexão apropriada sobre os fatos do caso ou uma argumentação racional.”
O julgamento do RE 765.320 exemplifica muito bem essa carência de rigor técnico no uso de regras jurisprudenciais, na medida em que cria situação curiosa, na qual a não observância da técnica do distinguishing acabou levando a Corte — sem se dar conta — ao overruling. Como o decisório passou a admitir, pela primeira vez, o pagamento de FGTS nos contratos nulos referentes ao regime estatutário, não se cuida de simples reafirmação do case law, mas de nova (e teratológica) orientação, a qual contraria a definição assente na jurisprudência pretoriana de que o contrato temporário tem natureza jurídica de direito administrativo (conforme, por exemplo, AgR na Rcl 7.157).
É preocupante o fato de que essa decisão errônea possa repercutir em um sem-número de outros casos, com reflexos financeiros significativos para o erário, condenando o Estado, já em situação precária, a arcar com o pagamento de valores que nunca antes tiveram de ser recolhidos. Há claro risco de um cenário de insegurança jurídica, por violação às regras do jogo, com alta probabilidade de, mantido o entendimento, ser instaurado o caos financeiro na federação.
Se as consequências econômicas desse equívoco judicial já são de “deixar os cabelos em pé”, do ponto de vista axiológico, o absurdo é ainda maior, pois a nova decisão vai de encontro à defesa histórica feita pelo próprio STF do concurso público, ao conferir ao servidor contratado temporariamente maisdireitos do que a Constituição havia reservado ao servidor aprovado em concurso (que, como se sabe, não faz jus ao FGTS, por exclusão expressa contida no artigo 39, § 3º). Por conta de uma falha no manejo de precedentes judiciais, foi simplesmente criado um regime híbrido, que se afasta não só daquele regime administrativo legalmente instituído pelo ente estadual no exercício da autonomia federativa, como também daquele ao qual se sujeitam os concursados.
1 “Art. 323-A. O julgamento de mérito de questões com repercussão geral, nos casos de reafirmação de jurisprudência dominante da Corte, também poderá ser realizado por meio eletrônico.” (incluído pela Emenda Regimental 42/2010)
2http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/06/881d8582d1e287566dd9f0d00ef8b218.pdf
Por Onofre Alves Batista Júnior, Tarcísio Diniz Magalhães e Marcelo Pádua Cavalcanti
Fonte: Consultor Jurídico