A disputa entre estados e municípios na definição da competência tributária para onerar operações realizadas com bens digitais não é nova. No final de 2015, o Convênio ICMS 181 avocou para os estados a competência para tributar, pelo ICMS, as transferências via download, de aplicativos, programas de computador, jogos e outros.
Mais recentemente, o município de São Paulo adotou a mesma estratégia: no último dia 19, publicou o Parecer Normativo SF 01/2017, visando interpretar a legislação que trata da tributação, pelo ISS, “das atividades de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação, através de suporte físico, transferência eletrônica de dados (download de software) ou, ainda, quando instalados em servidor externo (Sofware as a Service – SaaS)”.
A justificativa apresentada para a edição do referido Parecer foi a necessidade de uniformização da interpretação aplicável ao “enquadramento tributário” desses negócios jurídicos. O resultado seria maior segurança à atividade dos agentes administrativos e dos contribuintes e a respectiva vinculação dos órgãos submetidos à Secretaria da Fazenda Municipal a esse entendimento.
A medida, porém, não traz mais segurança jurídica. Ao contrário, impõe ao contribuinte o ônus de discutir o conflito de competência criado entre estados e municípios: se o Parecer 01/2017 determina a tributação pelo ISS, o Convênio ICMS 181/2015 é claro pela incidência do imposto estadual. Não obstante isso, ainda que se admita que as operações mencionadas estão de fato sujeitas ao ISS, como pretende a administração municipal, a redação do Parecer apresenta diversos problemas.
O caput do artigo 1º estabelece, de forma clara, que o licenciamento de software, por meio físico ou download ou quando instalado em servidor externo (Software as a Service – SaaS) deverá ser enquadrado no subitem 1.05 (licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação) da Lei Municipal nº 13.701/03, sujeito à alíquota de 2%.
Fosse apenas essa a determinação, a única questão a ser enfrentada pelos contribuintes seria o já mencionado conflito de competência com os estados. Há mais, porém. Esse mesmo dispositivo, em seu parágrafo único, prevê que a interpretação delineada no caput não impede o (re)enquadramento das atividades envolvidas no contrato de licenciamento de software nos subitens 1.03 (processamento de dados e congêneres) e 1.07 (suporte técnico em informática, inclusive instalação, configuração e manutenção de programas de computação e bancos de dados), sujeitas às alíquotas de 5% e 3%, respectivamente.
Disso decorre que os contribuintes envolvidos com operações de SaaS, por exemplo, que estiverem recolhendo o ISS à alíquota de 2%, considerando o contrato como tendo um único objeto (licenciamento de software), estarão vulneráveis à autuação fiscal, com base no desmembramento do negócio. Ou seja, as autoridades poderão fragmentar a operação em várias atividades, incluindo as acessórias ao licenciamento, enquadrá-las nos itens 1.03 ou 1.07 e impor-lhes as alíquotas de 5% e 3%. Para cada atividade (re)enquadrada, a autoridade poderá atribuir, por arbitramento, um valor extraído dos termos contratuais, gerando distorções bastante prejudiciais e eventualmente dissonantes da realidade da operação realizada.
Ao lado disso há outro ponto controvertido: nos termos do artigo 2º do Parecer 01/2017, é irrelevante, para fins do enquadramento delineado no artigo 1º, o fato de o software ter sido programado ou adaptado segundo as solicitações do tomador (software por encomenda) ou padronizado (software de prateleira ou off the shelf). Em quaisquer das hipóteses, portanto, incidirá o ISS.
Contudo, a incidência do ISS sobre a licença do chamado software de prateleira rompe com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sedimentada no julgamento do RE 176.626 – naquela ocasião, o Tribunal definiu a incidência do ICMS sobre essa modalidade de negócio.
Ainda que a decisão seja passível de críticas, parece-nos que o município de São Paulo não poderia, por ato normativo infralegal, desconsiderar tal entendimento. Ademais, o fato de o Parecer se autointitular “interpretativo” (art. 3º) representa risco de a administração aplicar as posições então firmadas de forma retroativa e esse ponto é especialmente sensível nesse caso da tributação dos “softwares de prateleira”.
Todas essas considerações apontam para a absoluta ausência de segurança jurídica quanto à incidência tributária sobre operações com bens digitais ou realizadas em ambiente virtual. A falta de uniformidade quanto às normas tributárias e a disputa incessante entre os entes subnacionais além de potencialmente afugentar investimentos futuros na área, por certo resultarão em judicialização da questão, maior dispêndio de recursos públicos e redução na eficiência de tais negócios. A necessidade de um debate sério sobre o tema, que supere ambições arrecadatórias de curto prazo, é premente.
FONTE: JOTA < https://jota.info/colunas/pauta-fiscal/tributacao-de-softwares-e-oparecer-normativo-sf-012017-27072017>. Acesso em 30/08/2017. Modificado.
Jabour Brandão Alkmim Advocacia e Consultoria