Nós, na condição de consumidores ou de empresários, temos uma vaga noção, mas não temos ideia de quanto, somos dependentes de tecnologias digitais, mais precisamente de softwares ou programas de computador, na linguagem tupiniquim, em toda e qualquer atividade, seja de natureza pessoal ou profissional, que tomam nosso dia a dia.
Não obstante o fato de tais tecnologias estarem presentes em nosso cotidiano, são inúmeras as incertezas ou dúvidas sobre a natureza jurídica intrínseca, bem como das relações decorrentes da produção, da circulação e do uso dos programas de computador, especialmente quando se trata de definir que tributos incidem sobre tais relações e a competência para instituir e cobrá-los.
Cabe, de início, abrir um parêntese para referir que a proposta de reforma apresentada pelo Deputado José Carlos Hauly, que prevê a criação de um imposto sobre bens e serviços (IBS), e também de outra em gestão no Poder Executivo, que prevê a criação de imposto sobre o valor agregado (IVA), torna irrelevante, para fins tributários, a natureza jurídica intrínseca do software, na medida que, seja como mercadoria ou como serviço, seriam onerados pelo mesmo imposto.
Contudo, enquanto não vemos a tão falada e necessária reforma tributária avançar no Congresso Nacional, atos legais e administrativos jorram de todas as fontes, apesar da abundância de normas existentes sobre tudo, que cada dia “perturbam” o caos legislativo reinante, ao qual forçadamente nos adaptamos.
Nesse contexto caótico chama atenção o Convênio ICMS n. 106/2017, recentemente editado com a pretensão de regulamentar a cobrança do imposto estadual sobre operações, inclusive mediante transferência eletrônica de dados, com bens e mercadorias digitais, tais como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, estendendo a possibilidade de incidência sobre disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais.
Conquanto possa fugir de nossa compreensão a existência de mercadorias passíveis de transferência eletrônica, pois temos arraigado o conceito de que mercadoria é coisa material, corpórea, para o Supremo Tribunal Federal isso é irrelevante, eis que os Tribunais não podem ficar presos a premissas jurídicas que não se mostram mais totalmente corretas em face das situações novas, anteriormente não previstas, que ocorrem no mundo real. (ADI 1945).
Sem embargo, não é admissível contrariar, nem mesmo enfraquecer, o texto constitucional para permitir a cobrança de ICMS em situação que, ainda que admitindo a modernização do conceito jurídico de mercadoria, encontra-se fora dos limites ali definidos.
A esse respeito não podemos deixar de referir que a Constituição brasileira outorga e limita a competência dos Estados para instituir imposto sobre operações de circulação de mercadorias. Assim, para dar ensejo à incidência do imposto é necessária e suficiente a realização de operações de circulação, no seu conceito jurídico e econômico de bens postos no comércio, ou seja, deve haver a mudança da sua titularidade.
Repita-se o óbvio. Não pode ocorrer incidência de imposto sobre a circulação de mercadoria se não houver circulação de mercadoria. Entretanto, o Confaz ultrapassou essa barreira para, sem sequer ter competência constitucional para tanto, prever a cobrança de ICMS sobre a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais.
Ora, por mais amplos e modernos que sejam os conceitos de mercadoria e de circulação, a disponibilização programas de computador mediante pagamento periódico neles não se amoldam.
Importante observar que na era em que vivemos, em evolução e cada vez mais dependente de programas de computador, o mercado digital se transforma rapidamente. Passamos da circulação de softwares em meio físico para a circulação digital e, atualmente, para a chamada “Computação em Nuvem” (Cloud Computing, em inglês), onde pululam siglas como SaaS, IaaS, PaaS e outras, que traduzem novas formas de utilização de ferramentas digitais.
Embora desprovido de competência e de conhecimento mínimos para falar sobre o tema, me é possível dizer, de uma maneira muito superficial, que os modelos SaaS (Software as a Service – Software como Serviço), IaaS (Infrastructure as a Service -Infraestrutura como Serviço) e PaaS (Platform as a Service – Plataforma como Serviço), em Cloud Computing, são novos modelos de uso de ferramentas digitais, sem compra ou licenciamento de programas de computador, baseados em pagamento pela utilização dos recursos.
Dessa perfunctória análise, não nos parece difícil concluir que disponibilização de programas de computador mediante pagamento periódico pelo uso não se ajusta ao conceito de circulação de mercadorias, por mais amplo que se tome esse conceito.
Certamente podem ser levantadas e trazidas a debate outras questões sobre o tema, mas nos limitamos ao quanto aqui tratado, sobre o qual é possível prever a ocorrência de conflitos de competência entre Estados e Municípios, que demandarão a atuação do Poder Judiciário, caso os Estados instituam imposto na forma regulada através do convênio antes referido, sobre atividades que não correspondem à circulação de mercadorias.
Por Gilson J. Rasador
Fonte: tributario.com.br