É fácil falar mal do nosso atual sistema tributário, em especial no que se refere à tributação sobre o consumo, que superpõe vários tributos, de diferentes níveis federativos: PIS, Cofins, IPI e Cide (federal), ICMS (estadual) e ISS (municipal). Sei que não existem sistemas perfeitos, mas o nosso deixa muito a desejar nesse âmbito. Outros problemas existem na tributação da propriedade e da renda, mas destes tratarei posteriormente.
Estou convencido que a melhor maneira de reformar esse sistema é através de micro-reformas através de leis, sem alterar a Constituição, conforme já escrevi em outra coluna. Também estou convencido que não é suficiente reformar o sistema tributário (receita pública), sendo necessário também reformar o sistema de gastos públicos, que venho denominando de Reforma Financeira, sem a qual a dívida pública explode, como já está acontecendo.
Todavia, a despeito dessas observações, constata-se que as propostas em curso no Congresso estão avançando, seja a PEC 45 (Câmara), seja a PEC 110 (Senado), que deverão se encontrar em algum ponto durante sua tramitação legislativa, sob pena de uma verdadeira colisão de trânsito.
Enfim, se algo irá ser aprovado, como o cenário atual dá a entender, parece-me conveniente apresentar algumas sugestões para serem debatidas visando o possível aperfeiçoamento das propostas em curso. O ponto central das duas propostas (as duas PECs) é criar o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, que se pretende venha a unificar a tributação sobre o consumo no Brasil, centralizando sua arrecadação na União, que redistribuiria parte do montante arrecadado para Estados e Municípios.
Há um problema com o pacto federativo, que é uma cláusula pétrea da Constituição (art. 60, §4º, “a”) referente à adoção do IBS já tratei em outra coluna. A fórmula para sua ultrapassagem está na implantação de um IVA dual, que seja plenamente não-cumulativo. O IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas possui um bom estudo nesse sentido (). Desta forma os Estados e Municípios teriam um tributo para chamar de seu, e a União também. Quais dos tributos atuais entrariam nesse pacote federal é algo a ser debatido, porém, por mim, colocaria o PIS, a COFINS e a CIDE, mas não o IPI, que possui nítida função regulatória, isto é, extrafiscal, podendo fazer as vezes do imposto regulatório que as duas PECs também preveem. No âmbito estadual certamente o ICMS teria que fazer parte, bem como o ISS. A não-cumulatividade plena deve ser explicitamente detalhada no texto constitucional, em nome da segurança jurídica.
Com a sugestão do IVA dual, a questão da tributação do mercado digital ficará atendida, e com repeito ao federalismo, cláusula pétrea constitucional. Seria conveniente que tal tributação fosse concentrada na União, em face do caráter difuso desse tipo de atividade, cuja fiscalização seria muito difícil se estivesse no âmbito estadual ou municipal.
É justo e necessário permitir que existam alíquotas diferenciadas, sob a lógica da seletividade. Afinal, alíquota única, como previsto nas PECs 45 e 110, engessa todo o sistema, uma vez que coloca do feijão ao avião no mesmo patamar de tributação, o que é inadequado. A criação de cinco ou seis faixas de tributação sobre o consumo ficaria de bom tamanho.
É importantíssimo analisar que, com o IBS, haverá fortíssimo aumento da carga tributária para alguns setores, em especial o de serviços, que engloba atividades como educação e saúde. Se for somado este aumento de tributação sobre o consumo à tributação dos dividendos, pela alteração do Imposto sobre a Renda, o impacto será quase confiscatório. Deve-se ainda considerar na análise deste tópico dois outros pontos: 1) O setor de serviços usa intensivamente mão de obra, a qual não gera créditos na tributação sobre o consumo; logo, a carga tributária será ainda mais fortemente sentida, e haverá o risco de aumento de desemprego, já alto em nosso país. Outros segmentos, como o da construção civil, igualmente usuário de mão de obra intensiva, será fortemente impactado. 2) Muitos serviços são prestados a pessoas físicas, que também não recebem créditos nas operações de consumo, logo, o aumento do custo será exponencial, e sem a possibilidade de repasse em cadeia. A carga tributária atual é de 33% do PIB, e se adotados os parâmetros das PECs, isso seguramente disparará. Alternativa para debate: estabelecer desde logo a possibilidade de adoção de um sistema de crédito presumido para as empresas que utilizem mão de obra intensiva.
Dois outros pontos que devem ser considerados na análise, que não se revelam integralmente verdadeiros nos discursos apresentados, dizem respeito à simplificação e à segurança jurídica.
A tendência é que, em muito longo prazo ocorra simplificação, uma vez que existirão menos tributos. Todavia, a longo (10 anos), médio e curto prazo a vida das empresas se tornará um inferno, pois terão que conviver com o sistema atual e o que estiver em implantação gradual. Isto sem falar no risco sempre presente de a nova sistemática, durante sua implantação, se tornar mais um tributo no sistema, sem a extinção dos atuais. Logo, é necessário estabelecer salvaguardas contrárias a esse aspecto nos textos normativos em debate.
Outro ponto a ser considerado sobre a alegada simplificação é a criação do Superfisco Nacional que terá que ser implantado, abrangendo as atuais máquinas arrecadatórias da União, Estados e Municípios. Imagine-se uma empresa do segmento de distribuição de combustíveis, cuja atuação ocorre em todo o território nacional. Um pequeno problema que vier a ocorrer no Município de Cabrobó, em Pernambuco, poderá travar todo o sistema de obtenção de CNDs – Certidão Negativa de Débitos, documento fundamental para sua atividade. Já imaginaram como será a vida empresarial com esta situação?
A alegada simplificação também fica colocada em xeque quando se observa toda a questão processual envolvida. Aprovado o IBS da PEC 45, ou o da PEC 110, um auto de infração lavrado pelo Superfisco Nacional será impugnado em Brasília? Centralizaremos tudo? Isso vai contra toda a argumentação do Ministro Paulo Guedes, de descentralização, que analisei em outra coluna. Acabaremos tendo mais Brasília e menos Brasil.
No que tange à segurança jurídica o problema é mais crucial, pois se deve considerar que não basta a aprovação da reforma constitucional, sendo necessária a aprovação de leis complementares, leis ordinárias, decretos, portarias, circulares, instruções normativas, formulários e toda uma plêiade de instrumentos burocráticos que possibilitarão a regulamentação e o pagamento desses tributos. É bastante concreta a possibilidade de surgirem dúvidas e ampla judicialização em face da vasta gama de novos conceitos jurídicos a serem alterados em todo esse conjunto normativo.
Deve-se ainda considerar nos textos normativos em debate no Congresso o que será feito com os créditos atualmente existentes contra os Fiscos, nas mãos dos contribuintes. Diversos segmentos econômicos possuem uma carteira de créditos a serem compensados. Será reconhecido o direito de compensar os créditos de ICMS contra o futuro IBS? Ou esse valor será convertido em precatórios, cujo recebimento no Brasil possui eternas e insuperáveis incertezas? É necessário regular isso nos projetos em tramitação, em prol da segurança jurídica.
Os problemas de simplificação e de segurança jurídica voltam a se cruzar quando se observa os regimes tributários atualmente existentes, pois, como ficarão as empresas de pequeno porte, que possuem comando constitucional para receber tratamento favorecido (art. 170, IX)? O Simples passará a ser um regime tributário favorecido apenas para fins de Imposto sobre a Renda, uma vez que o IBS possui alíquota única? Isso aponta, mais uma vez, para a adoção de um IVA dual, com múltiplas alíquotas, cosoante acima exposto.
Outro ponto que deve ser tratado de forma clara diz respeito à Zona Franca de Manaus, que possui previsão constitucional de tratamento diferenciado até o ano de 2073. Com a unificação de tributos proposta pelo IBS sua vantagem competitiva se restringirá ao Imposto sobre a Renda? É realmente essa a intenção? Seguramente haverá judicialização da matéria.
O fato é que, observando outros países, constata-se que propostas de reforma tributária com alterações tão fortes no sistema econômico, como a que está sendo proposta, levam muitos anos em discussão e planejamento, para só depois ser implantada. Penso que estamos deixando um pouco de lado esta fase inicial, de discussão e planejamento, e acelerando a de implantação, que se iniciará quase que de imediato, a despeito dos vários anos para sua completa vigência. As propostas em trâmite no Congresso não apresentaram cabalmente as estimativas de impacto econômico (o que viola o art. 113, ADCT), pois estão confiando que os ajustes ocorrerão no prazo de 10 anos para sua completa implantação. Sei que não se pode parar o país para implantar uma reforma desse tamanho, ocorre que, ao deixar de lado a fase de planejamento, estamos buscando o estepe no porta luvas para trocar o pneu com o carro andando, pois sequer sabemos onde está o pneu-socorro.
Há, contudo, uma certeza. Aprovada qualquer das propostas em trâmite no Congresso, não faltará trabalho para os tributaristas, tantos são os problemas que se avizinham.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 7 de outubro de 2019, 8h00