A proteção conferida a todos os bens industriais decorre da necessidade de se garantir o retorno do investimento feito por aqueles que realizam pesquisas e promovem o desenvolvimento de produtos e serviços que melhoram a vida da sociedade. Não fosse essa proteção, inexistiria interesse no progresso, salvo os de forma altruísta que em razão dos altos custos envolvidos são demasiadamente escassos, ou os para utilização na guerra.
Há pesquisas, inclusive, que apontam que, em mercados nos quais as marcas e patentes têm proteção relevante, a média de qualidade dos produtos é maior.
Atento a essa situação, o constituinte originário previu expressamente a necessidade de se garantir essa proteção no artigo 5º, inciso XXIX, da Constituição da República.
No que concerne especificamente à marca, para que ela seja protegida, deve ser registrada e, portanto, dotada de novidade relativa (basta que seja relativa em razão de a proteção ser em regra conferida apenas no segmento mercadológico em que o produto está inserido), não colidir com notoriamente conhecida (artigo 126 da Lei 9.279/96) e não incorrer em impedimento (artigo 124 da Lei 9.279/96). Em regra, feito esse registro, surge para o titular da marca o direito de proteção contra o seu uso por terceiros sem autorização.
A doutrina do first sale combinada ao princípio da exaustão estabelece que essa proteção da propriedade intelectual contra venda ou utilização do produto ou serviço sem a autorização do titular do direito restringe-se à primeira venda, exaurindo-se na sequência. Melhor explicando, após a introdução pelo titular do direito industrial do produto ou serviço protegido no mercado, qualquer pessoa pode aliená-lo, encerrando-se o direito de proteção.
O objetivo da utilização do princípio da exaustão é exatamente promover um equilíbrio entre os interesses do titular do direito industrial e os interesses do mercado e dos consumidores.
É nesse contexto que se insere a importação paralela, objeto específico do presente artigo. Ela, segundo Edson Takeshi Nakamura e Eduardo Kenji Goto, diz respeito a produtos e serviços vendidos inicialmente fora do Brasil e que são introduzidos aqui por meio de importação feita por pessoa distinta do titular da propriedade industrial ou que não detenha o direito de uso dessa propriedade. Os bens importados dessa maneira recebem o nome de grey goods.
A exaustão, nessa conjuntura de limitação à proteção da propriedade intelectual e importação paralela, conforme a advogada Maristela Basso e também a juíza de Direito Helena Cândida Lisboa Gaede, pode ter seu conceito tomado em âmbito nacional, internacional ou regional.
Na exaustão nacional, a venda de um produto protegido em determinado país não gera efeitos extintivos da proteção do direito industrial em outro país, ou seja, feita a venda do produto no país “X”, a revenda interna e internacional passa a ser livre, porém, o produto vendido no exterior não poderá entrar no país importador sem a autorização do titular da marca ou do seu representante nesse país. Trata-se de hipótese em que a importação paralela é claramente proibida.
Na exaustão internacional, as importações paralelas são permitidas, desde que o ingresso do produto no mercado, nacional ou internacional, tenha sido feito inicialmente pelo detentor do direito de propriedade industrial ou por alguém autorizado por ele.
Finalmente, na exaustão regional, aplica-se o mesmo conceito da exaustão internacional, mas agora não considerando apenas um país, e sim um conjunto deles, como no caso da União Europeia.
A base constitucional que fundamenta a proteção da propriedade industrial está inserida nos artigos 5º, inciso XXIX, 170, inciso IV e 219, todos da Constituição da República.
Como se depreende dos referidos dispositivos, busca-se proteger tanto o direito à propriedade industrial, até como forma de promover o desenvolvimento científico e tecnológico nacional, quanto a livre concorrência.
Logo, cabe ao intérprete, objetivando manter a coerência constitucional e tendo em vista o princípio da unicidade, fazer a interpretação no caso concreto de forma a garantir a harmonização constitucional.
Infraconstitucionalmente e dando concretude ao artigo 5º, inciso XXIX, da Constituição Federal foi editada a Lei 9.279/96, cujo destaque neste momento é voltado para os seus artigos 129, 130 e 132. Da leitura desses dispositivos é fácil constatar a proteção conferida à propriedade industrial.
No que diz respeito à importação paralela, importante verificar que o artigo 130, inciso III oferece o fundamento para que o titular do direito de propriedade industrial evite a diluição da sua marca ou daquela que representa, seja em razão da sua falsificação, seja em razão do seu uso não autorizado.
Já o artigo 132, inciso III impõe um limite ao exercício do direito de propriedade sobre a marca.
Conforme bem explanado por Maristela Basso, "no que diz respeito aos limites no exercício dos direitos de marca, o Brasil incorporou o conceito de exaustão de direitos em nível nacional, com expressa ressalva das situações previstas nos §§3º e 4º do art. 68 da LPI". Tal conclusão também vem exposta no artigo A (i)licitude das importações paralelas frente às práticas de concorrência desleal, de Ricardo Minner, e no artigo Importação paralela e concorrência desleal, da juíza de Direito Helena Cândida Lisboa Gaede.
No mesmo sentido é entendimento do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1.200.677/CE, de relatoria do ministro Sidnei Beneti, julgado em 18/12/2012:
No tocante ao regramento dado pelo sistema jurídico brasileiro às hipóteses de "importação paralela", deve-se indicar que o art. 132, III, da Lei n. 9.279/1996 proíbe que o titular da marca impeça a livre circulação de produtos originais colocados no mercado interno por ele próprio ou por outrem com o seu consentimento. Ou seja, permitiu-se a chamada comercialização paralela interna ou nacional, hipótese em que, após a primeira venda do produto no mercado interno, o direito sobre a marca se esgota, de modo que o titular da marca não poderá mais invocar o direito de exclusividade para impedir as vendas subsequentes. Com isso, a nova Lei da Propriedade Industrial incorporou ao sistema jurídico brasileiro o conceito de exaustão nacional da marca, segundo o qual o esgotamento do direito sobre a marca somente se dá após o ingresso consentido do produto no mercado nacional, o que implica afirmar que o titular da marca ainda detém direitos sobre ela até o ingresso legítimo do produto no país. Dessa maneira, o titular da marca internacional tem, em princípio, o direito de exigir o seu consentimento para a "importação paralela" dos produtos de sua marca para o mercado nacional (grifo nosso).
A adoção do conceito de exaustão nacional, portanto, fica evidenciada em razão de o texto do artigo 132, inciso III, da LPI expressamente prever que o titular da marca não pode impedir a circulação de produtos que tenham sido introduzidos por ele ou por outrem com o seu consentimento no mercado interno. A contrário senso, ele pode impedir a primeira venda (first sale) no mercado interno, sem o seu consentimento, de produtos que ostentem a marca registrada por ele ou cuja autorização de uso lhe pertença.
Sendo assim, as condições para aplicação do princípio da exaustão e, portanto, para vedação do exercício de qualquer direito protetivo por parte do titular da marca são: a) mercado interno; e b) produto colocado no mercado interno pelo titular da marca ou com o seu consentimento claro e inequívoco.
Inexistindo qualquer dessas condições, não se aplica o princípio da exaustão e, consequentemente, o titular da marca ou o seu representante autorizado possuem direito de restrição do comércio dos seus produtos no mercado nacional.
A questão que se levanta neste ponto é sobre a conformidade com a intenção do constituinte e do legislador de se permitir que produtos adquiridos por importadores paralelos no exterior e introduzidos no mercado nacional tomem mercado de empresas que tem autorização da marca para importar, contratam pessoas para o desenvolvimento dos trabalhos, investem em marketing, tecnologia, pós-venda, promoções, informações, dentre outros.
A título de exemplo, pode-se citar o caso de uma empresa, representante exclusiva da marca “X” no Brasil, que ao promover o recall do equipamento “y” descobriu que apenas 22% dos produtos enviados pelos consumidores tinham sido adquiridos no país. Os outros 78% foram adquiridos no exterior, mas os consumidores, por óbvio e pela seriedade do trabalho, procuraram a empresa brasileira no momento do recall, e não os importadores paralelos que colocaram esses produtos no mercado (a empresa concordou em divulgar as informações, mas não concordou com a divulgação de dados que pudessem identificá-la no mercado).
A aceitação dessa nova realidade pode fazer com que não seja economicamente viável investir em contatos, pesquisa e desenvolvimento, mas tão somente trazer o produto para o país da forma mais econômica possível, com menor responsabilidade, o que pode gerar, além de prejuízo para o mercado e para os consumidores, o incremento na prática do crime de descaminho tipificado no artigo 334 do Código Penal.
A chance de isso ocorrer decorre do fato de que os importadores paralelos compram produtos legítimos no exterior, mas os trazem sem a sua oficial internalização.
Afora isso, há a possibilidade de configuração do crime tipificado no artigo 195 da Lei 9.279/96, ou seja, da prática do crime de concorrência desleal, na medida em que o terceiro não autorizado pela marca estará utilizando-se de meio fraudulento para retirar a clientela do real legitimado à realização da primeira venda do produto no mercado nacional.
Um ponto muito comum de equívoco no que diz respeito à importação paralela é o pensamento de que elas são sempre boas para o consumidor na medida em que permitem que ele compre produtos com preços mais baixos.
O primeiro problema de se considerar isso totalmente correto é que os produtos importados paralelamente muitas vezes não estão sujeitos à tributação, seja porque vendidos em pequenas quantidades pela internet, seja porque o importador paralelo subfatura os produtos e paga menos impostos. Além disso, o importador legal muitas vezes tem que certificar o produto perante o Inmetro, o que gera maiores custos. Esse procedimento não é feito pelos importadores paralelos. Logo, a base comparativa de preços já tem início em premissa equivocada de que tanto o importador legal quanto o importador paralelo pagam o mesmo preço pelos produtos.
Afora isso, o propósito dos importadores paralelos é obter maiores lucros. Logo, possivelmente quando retirarem o importador legal do mercado, aumentarão os preços para lucrar mais.
No mais, como já exposto anteriormente, os importadores paralelos não investem em pesquisa e desenvolvimento, diferente dos importadores legais.
Conclui-se, portanto, que os benefícios eventualmente gerados pela autorização da importação paralela, em regra, tendem a ser muito menores que os malefícios causados por ela.
Valho-me, neste ponto, dos argumentos favoráveis e contrários à importação paralela expostos por Maristela Basso.
Argumentos favoráveis à importação paralela:
a) obstáculo à segmentação do mercado e, portanto, à cobrança de preços diferenciados em diversos mercados;
b) bem estar do consumidor com acesso a produtos mais baratos com a mesma qualidade;
c) restrição à discriminação geográfica de preços; e
d) incentivo ao livre comércio.
Argumentos contrários à importação paralela:
a) manutenção da consistência e da qualidade do produto ou serviço, na medida em que as exigências técnicas de um mercado podem não ser as mesmas de outro e importadores paralelos podem não ter os cuidados necessários no transporte ou embalagem dos produtos;
b) serviços de assistência e manutenção pré e pós-vendas, além de treinamento de vendedores, fornecimento de informações técnicas aos consumidores, show-room, garantia, dentre outros;
d) em um território no qual se permita a importação paralela fica mais difícil ao importador legal/produtor prever a capacidade de êxito dos seus investimentos o que, por consequência, diminui esses investimentos;
e) as importações paralelas geram uma dificuldade maior na revelação de cópias ilícitas como, por exemplo, de produtos pirateados ou contrafeitos, ou seja, essas cópias podem entrar no país como importações paralelas; e
f) importações paralelas desfavorecem a pesquisa e o desenvolvimento o que, ao final, pode gerar menores possibilidades de escolhas e disponibilidade de produtos aos consumidores, além de diminuição da qualidade dos produtos oferecidos.
Logo, apesar da restrição à importação paralela poder aparentar ter um aspecto restritivo e limitador da concorrência, ela impede a ocorrência do free rider, ou seja, que determinadas empresas se aproveitem dos investimentos feitos por outra (seja ela fabricante ou importador autorizado) sem que tenham contribuído com trabalho ou dinheiro para o desenvolvimento da marca e incremento da qualidade dos produtos e do atendimento ao consumidor.
Evitar o free rider é forma de garantir empregos no Brasil, a qualidade dos produtos e os investimentos feitos em marketing, pós-venda e garantia (atentando-se para o fato de que a garantia de produtos importados onera aquele que a presta, já que ele tem custos com frete internacional, por exemplo), além de assegurar a manutenção de investimentos na marca e informações técnicas adequadas aos consumidores.
De todo o exposto, fica a reflexão acerca dos rumos que se pretende dar ao mercado nacional: favorecer as empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento ou importam legalmente suas mercadorias, proibindo as importações paralelas e mantendo-se a adoção do princípio da exaustão nacional; ou liberar integralmente as importações paralelas, acolhendo-se os pontos favoráveis a ela como os mais importantes no equilíbrio buscado e para o maior bem-estar dos consumidores nacionais, seguindo-se, então, o regime da exaustão internacional.
Faz-se necessária, porém, uma definição, para que todos os agentes atuantes no mercado, sejam importadores ou representantes legalmente autorizados pela marca, sejam os atuais importadores paralelos e até mesmo os consumidores, tenham conhecimento exato do mercado em que estarão atuando e dos seus direitos e deveres nesse mercado.
Referências bibliográficas
BASSO, Maristela. Propriedade intelectual e importação paralela. São Paulo: Atlas, 2011.
COELHO, Fábio Ulhoa. Direito Comercial, volume 1. 16 ed., São Paulo: Saraiva, 2012.
GAEDE, Helena Cândida Lisboa. Artigo: importação paralela e concorrência desleal.
NAKAMURA, Edson Takeshi e GOTO, Eduardo Kenji. Artigo: importação paralela à luz da legislação de propriedade intelectual e da concorrência.
MINNER, Ricardo. Artigo: a (i)licitude das importações paralelas frente às práticas de concorrência desleal.
Por Leticia Daniele Bossonario
Fonte: ConJur