Generalidades
A não incidência tributária não é um conceito unívoco. A expressão pode significar três coisas diferentes, como veremos a seguir.
A não incidência pura é o fato de o objeto estar fora do campo abrangido pela tributação. Ao definir o fato gerador de determinado tributo, a lei tributária delimita do seu campo de incidência. O que estiver fora desse campo corresponde a não incidência pura. Difere da não incidência juridicamente qualificada.
Quando a não incidência é constitucionalmente qualificada estamos diante de imunidade tributária, isto é, proibição constitucional dirigida ao legislador ordinário das três esferas políticas considerando insuscetíveis de imposição tributária, bens, serviços, pessoas ou patrimônios declarados imunes.
A não incidência legalmente qualificada significa restrição à hipótese de incidência tributária, isto é, após definir o fato gerador da obrigação tributária, o legislador retira determinados atos ou fatos como veículos de incidência tributária. Por isso, a generalidade da doutrina moderna a denomina de isenção. Os elementos que compõem a norma de isenção são aqueles que foram retirados da norma que define o fato gerador.
A doutrina clássica considera isenção como dispensa legal do tributo devido, sendo certo que o art. 175 do CTN a considera como hipótese de exclusão do crédito tributário juntamente com a anistia, o que, de certa forma, prestigia a conceituação clássica de isenção.
Exportação de serviços para o exterior
Dentro da política de que não se deve “exportar tributos” para o exterior o inciso II, do § 3º, do art. 156 da CF, relativamente ao ISS, determina que cabe à lei complementar “excluir da sua incidência exportação de serviços para o exterior.”
Posto que o ISS não grava o serviço, mas a sua efetiva prestação, tem-se em uma interpretação literal que a Constituição determina a exoneração, por lei complementar, da tributação pelo ISS da prestação de serviços no exterior, o que não passaria de uma declaração acaciana. Só se exonera da tributação algo que a ela está sujeito e não aquilo que está fora do alcance da tributação pelas leis brasileiras que só surtem efeitos no território nacional. Apenas um tratado ou uma convenção internacional, às avessas, poderia possibilitar a dupla tributação dos serviços prestados n’um e n’outro território.
Considerando que a Constituição não contém, nem deve conter dispositivos inúteis, cabe ao intérprete conferir àquele texto constitucional uma interpretação que confira algum efeito jurídico.
Pela interpretação sistemática das normas constitucionais e pela interpretação teleológica chega-se à conclusão de que a Carta Política manda exonerar da tributação os serviços contratados por pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas no estrangeiro, mediante pagamento do respectivo preço por fonte igualmente situada no exterior do País. No caso é indispensável que o efeito do serviço prestado seja gerado em nosso território, do contrário tratar-se-á de mera não incidência pura, isto é, o fato de o objeto da tributação não estar abrangido no campo da incidência tributária. Já dissemos que a prestação de serviços pressupõe dois sujeitos, o prestador e o tomador, pois não existe prestação de serviço a si próprio, nem obrigação consigo próprio. Portanto, não basta a execução do serviço. É preciso que o serviço executado seja usufruído pelo tomador. Somente assim se tem por ocorrido o fato gerador que se assenta em uma obrigação de fazer (aspecto temporal do fato gerador do ISS). É a única interpretação cabível, não sendo possível cogitar-se de exportar serviços ou exportar a sua prestação, pois eles não são passíveis de viagem, como acontece com as exportações de produtos industrializados e de mercadorias, para exonerar da incidência do IPI e do ICMS, respectivamente.
É que o IPI e o ICMS resultam de operações que se traduzem por uma obrigação de dar, ao passo que o ISS resulta de uma operação que se traduz por uma obrigação de fazer. Serviço significa esforço humano que resulta na produção de um bem imaterial para a fruição do tomador.
Na obrigação de dar é possível a destinação de produtos ou mercadorias ao exterior. Na obrigação de fazer que gera o serviço, ou seja, o ato de servir ou prestar serviço, não é passível de exportação.
Contudo, essa única interpretação constitucional possível restou invalidada pelo parágrafo único do art. 2º da Lei Complementar nº 116/03 que assim dispôs:
Art. 2º. O imposto não incide sobre:
I – as exportações de serviços para o exterior do País.
…
Parágrafo único. Não se enquadram no inciso I os serviços desenvolvidos no Brasil, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior.
Ao invés de conferir à norma constitucional a única interpretação cabível para a exoneração do ISS, o preceito da lei complementar, além de confundir o resultado com o efeito, torna letra morta aquele preceito da Constituição, bem como a sua própria prescrição.
Ora, quando o prestador aqui localizado executa um serviço, o resultado só pode ser produzido aqui. Só que a execução do serviço, por si só, não gera a obrigação de pagar imposto, porque o fato gerador do ISS, como já vimos, é a efetiva prestação de serviço. É preciso que esse serviço executado surta efeito imediato em relação ao tomador (aspecto temporal do fato gerador). Se o tomador não puder usufruir do serviço contratado não haverá prestação de serviço e assim não ocorrerá o fato gerador do ISS, sendo desnecessária nesse caso a lei dispor sobre a não incidência tributária. É o caso, por exemplo, de um tomador domiciliado no exterior que contrata os serviços de um artista plástico aqui residente para pintar um determinado quadro. A prestação efetiva de serviço somente acontecerá quando o tomador domiciliado no exterior receber o quadro (resultado da ação do pintor) para a fruição de seus efeitos imediatos. Só que essa hipótese não é de exportação de serviços, mas de um acontecimento atípico irrelevante juridicamente em termos de legislação do ISS. Somente haveria exportação de serviços se o artista estivesse a bordo de um avião pintando um quadro encomendado por um tomador estrangeiro, para ao término da viagem entregar ao tomador domiciliado no estrangeiro o quadro pronto e acabado. Mas, essa é uma hipótese cerebrina de difícil acontecimento não levada em conta pelo legislador.
No exemplo acima, se o quadro acabado (resultado) continuar no atelier do artista plástico não haverá prestação de serviço, mas se o tomador vir ao Brasil para receber o referido quadro o efeito (resultado, na terminologia da lei) se produzirá no território brasileiro, ocorrendo o fato gerador do ISS. É exatamente essa hipótese que nos termos constitucionais deveria ser objeto de não incidência juridicamente qualificada. Qualificar a não incidência pura, isto é, atribuir a não incidência àquilo que não está abrangido no campo da incidência tributária, como fez o dispositivo sob comento, não faz menor sentido.
Como sustenta o já citado Miguel Hilú Neto:
A previsão constitucional (art. 156, § 3º, II) e o disposto no art. 2º, I, da LC nº 116/03, são inócuos, visto que não há competência para que os Municípios tributem, pelo ISSQN, prestações de serviços que ocorreram no exterior.
Mais adiante continua:
… a LC n. 116/03 deveria haver desonerado a prestação de serviços no Brasil, para estrangeiros, paga mediante a remessa de numerário de lá para cá. [1]
Confesso que o tema não é fácil. Para a caracterização da exportação de serviços sob o regime da não incidência tributária a jurisprudência do STJ também exige que o efeito do serviço seja gerado no exterior (Resp 831.124/RJ, Rel. Min. José Delgado, DJ de 25-9-2006).
A única forma de dar ao dispositivo sob comento o efeito jurídico de desonerar o ISS, como pretendido pelo legislador, é o de considerar o serviço contratado por uma fonte situada no exterior do País mediante o pagamento do respectivo preço por fonte igualmente situada no estrangeiro, produzindo os efeitos no Brasil.
Prestação de serviços com relação de emprego, dos trabalhadores avulsos, de diretores e membros de conselho consultivo etc.
O art. 2º sob comento prescreve que o imposto não incide sobre:
[…]
II – a prestação de serviço em relação de emprego, dos trabalhadores avulsos, dos diretores e membros de conselho consultivo ou de conselho fiscal de sociedades e fundações, bem como dos sócios-gerentes e dos gerentes-delegados.
A não incidência aqui tratada mistura hipótese de mera explicitação da situação não abrangida pelo fato gerador, como no caso daquele que presta serviço com vínculo empregatício, com situação que implica restrição parcial da norma definidora do fato gerador do ISS, como no caso dos trabalhadores avulsos, que são aqueles que prestam serviços de natureza urbana ou rural, a diversas empresas mediante paga, mas sem vínculo empregatício, porém com intermediação obrigatória do órgão gestor de mão de obra (art. 9º, VI da Lei nº 8.630/93). O empregado, por sua vez, é a pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário (art. 3º da CLT). Não está abrangido pela norma definidora do fato gerador do ISS, independentemente de sua expressa exclusão.
Os diretores exercem função de representação da sociedade ou da fundação, praticando atos de gestão para cumprimento de suas finalidades, nos limites previstos no contrato social ou estatuto. Os membros do Conselho Consultivo opinam sobre matérias específicas, ao passo que, os membros do Conselho Fiscal fiscalizam os atos da administração da sociedade, mediante o exame de seus livros e papéis, submetendo à Assembleia-Geral o parecer sobre os negócios e operações sociais do exercício em que serviram, com base no balanço patrimonial e no balanço de resultado econômico. Os sócios-gerentes são os titulares da sociedade por cota de Responsabilidade limitada, que prestam serviços à sociedade mediante percepção de pro labore em valor fixado no Respectivo contrato social. Gerentes-delegados são pessoas que não sendo sócias exercem a atividade empresária, de forma permanente, em sua sede, filial ou sucursal em razão de sua contratação pela sociedade.
Em todas essas hipóteses, não há prestação de serviço remunerado por um preço ajustado entre as partes no contrato que versa sobre a obrigação de fazer. De fato, empregados não percebem preços, mas salários; diretores e Membros do Conselho Consultivo ou Fiscal percebem pro labore que não se confunde com preço, inerente à atividade de venda de mercadorias e serviços. Gerente-delegado não passa de um empregado contratado para gerenciar a sociedade. Recebe, pois, salário e não preço.
Valor intermediado no mercado de títulos e valores mobiliários, o valor dos depósitos bancários etc.
Finalmente o art. 2º sob exame prescreve que o imposto não incide sobre:
III – o valor intermediado no mercado de títulos e valores mobiliários, o valor dos depósitos bancários, o principal, juros e acréscimos moratórios relativos a operações de crédito realizadas por instituições financeiras.
A primeira parte do inciso legal sob comento, que se refere à não incidência do ISS sobre o valor intermediado no mercado de títulos e valores mobiliários, representa uma restrição à norma do subitem 10.02 que tributa a atividade de “Agenciamento, corretagem ou intermediação de títulos em geral, valores mobiliários e contratos quaisquer.” Em outras palavras, o preço decorrente de intermediação no mercado de títulos e valores mobiliários fica excluído da tributação na prestação de serviços a que se refere o subitem 10.02 da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/03.
Quanto ao valor dos depósitos bancários, o principal, juros e acréscimos moratórios relativos a operações de crédito realizadas por instituições financeiras nem seria necessária dispor sobre a não incidência tributária, pois tais valores não representam contraprestação pecuniária (preço) pela realização de operações de crédito por instituições financeiras, atividade que sequer consta da lista de serviços nos diversos subitens do item 15 pertinente às atividades do setor bancário ou financeiro.
Refêrencias
[1] In ISS LC 116/2003 à luz da doutrina e da jurisprudência, obra coletiva, coord. Ives Gandra da Silva Martins e outro, 2ª edição. São Paulo: MP Editora, 2008. p. 364-365.
Por Kiyoshi Harada
Fonte: tributario.com.br