Na área de reestruturação e insolvência, poucas questões jurídicas incitaram tantos debates quanto à garantia de alienação fiduciária, especialmente diante da intenção do governo de reformar a Lei de Recuperação Judicial e Falência (“LRF”). A discussão orbita, sobretudo, na manutenção ou não da qualidade de “crédito extraconcursal” daqueles créditos garantidos por alienação/cessão fiduciária. Sabe-se que a questão deve passar necessariamente por análises econômica e jurídica, sendo que o presente artigo, no tocante ao último ponto, pretender abordar a forma como a LRF e os tribunais têm tratado o tema em um cenário de crise econômico financeira.
De acordo com o artigo 49, parágrafo 3º, da LRF, não estariam sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, sendo, portanto, extraconcursal, o crédito de titular de posição de proprietário fiduciário. Portanto não é permitida a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial durante o período de suspensão das ações e execuções contra o devedor (o chamado stay period).
A primeira limitação imposta à eficácia de tal garantia reside no próprio texto legal e, para compreendermos sua abrangência, faz-se relevante saber o que é considerado, pela jurisprudência, como bem de capital essencial. Segundo o Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), os seguintes bens se enquadram em tal conceito: máquinas agrícolas (REsp 89679/RS), equipamentos de linha de produção (REsp 250190/SP), imóvel sede (CC 110.392/SP), veículos para empresa que atua no ramo de transportes (CC 146.631/MG).
Deixando de lado o senso comum do vocábulo, já houve discussão se bens como “dinheiro” ou “direitos creditórios” (ou recebíveis) poderiam ser considerados “bens de capital essenciais”, o que, aliás, traz à tona os outros questionamentos acerca da cessão fiduciária de recebíveis. Como se sabe, no passado, discutia-se, nos mais variados processos de recuperação judicial, se a cessão fiduciária de recebíveis também seria um crédito extraconcursal. Neste aspecto, somente em 2013, o STJ proferiu acórdão reconhecendo a sua exclusão dos efeitos da recuperação judicial, assim como ocorre com a alienação fiduciária (REsp nº 1412529/SP e REsp nº 1559457/MT). Também muito se debateu sobre a necessidade de registro da cessão fiduciária para o aperfeiçoamento (constituição) da garantia, até que, em 2016, o STJ decidiu pela sua desnecessidade. Contudo este entendimento este – é bom registrar-, não vem sendo admitido em alguns julgados de instâncias inferiores, de modo que sua prática é sempre recomendável (REsp nº 1412529/SP e REsp nº 1559457/MT).
Acerca do debate sobre se “dinheiro” ou “recebíveis” configurariam bens de capital essenciais, tem prevalecido a tese de que não deveriam ser considerados como tal, tendo em vista a sua fungibilidade e vinculação indireta com a atividade empresarial (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – “TJSP”, Agravo de Instrumento nº 2153642-03.2016.8.26.0000, Primeira Câmara de Direito Empresarial e TJSP, Agravo de Instrumento nº 2136868-92.2016.8.26.0000, Primeira Câmara de Direito Empresarial). É bem verdade que existem diversos tribunais de justiça, como é o caso do Estado do Rio de Janeiro, que vêm limitando a porcentagem dos recebíveis (em relação à totalidade dos recebíveis do devedor, que pode ser objeto de cessão fiduciária (TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0025957-76.2015.8.19.0000, Nona Câmara Cível e TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0023008-16.2014.8.19.0000, Sétima Câmara Cível).
Ainda há julgado do STJ que não permite sua retomada durante o stay period (CC nº 127207/BA), período este de 180 dias que a LRF literalmente designou como improrrogável. Contudo, sabe-se que, por evolução jurisprudencial, é prorrogável e pode ter sua contagem realizada por “dias úteis”, o que acaba por acarretar atrasos na retomada do bem objeto da garantia pelo credor fiduciário.
Como se observa, em que pese o tratamento privilegiado atribuído pela atual LRF, a alienação fiduciária ? possivelmente vítima de seu próprio sucesso ? tem sofrido diversos ataques e restrições pela jurisprudência pertinente às recuperações judiciais. Vê-se um esforço de compatibilizar o tão difundido uso desse instituto com a vontade de preservação da atividade empresarial em crise. Os rumores atuais são que a atual reforma da LRF deverá preservar os atuais privilégios ora atribuídos à garantia fiduciária. De qualquer forma, a identificação dessas restrições impostas pela jurisprudência deve inspirar cautela e nortear credores e devedores na pactuação de tal garantia, visando a segurança jurídica deste instituto.
Fonte: JOTA