Interessante notar que o mercado de previdência privada é altamente regulado e muitas vezes a legislação regulatória gera reflexos diretos no campo tributário e previdenciário.
É justamente o que acontece com a questão da transferência do gerenciamento de planos entre entidades fechadas de previdência privada (“EFPC” – operadoras de planos de benefícios, constituídas sob a forma de sociedade civil ou fundação, sem fins lucrativos, também conhecidas como fundos de pensão), bastante comum em casos de reorganização de empresas que patrocinam planos de previdência privada para seus empregados.
A transferência do gerenciamento encontra previsão expressa no artigo 33, IV, da Lei Complementar no 109/2001 e também no atual artigo 2o, VI, da Instrução no 5/2018 editada pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar (“PREVIC”), e envolve uma situação em que o plano é transferido sem qualquer alteração, isto é, são mantidas todas as regras e condições anteriores.
Frise-se que a transferência, decorrente de alteração societária ou de iniciativa do patrocinador do plano, deve ser total, isto é, deve abranger todos os participantes e assistidos e todos os ativos e passivos.
Em razão da necessidade de regulamentação específica, no passado a PREVIC propôs a edição de regras para tratar da transferência, o que resultou na edição, em 13.9.2017, da Resolução no 25 pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar (“CNPC”), contendo normas detalhadas sobre esse procedimento, como, por exemplo, a necessidade de elaboração de comparativo entre a EFPC de origem e de destino, no que tange ao custeio e às despesas, a obrigação de notificação dos participantes quanto à nova entidade gestora, a elaboração e protocolo do plano de transferência etc.
Vale destacar que a Resolução CNPC no 25 não cuida, de forma expressa, dos impactos da transferência de gerenciamento para fins de sucessão tributária e previdenciária, mas deixa claro que a operação implica o deslocamento de ativos e passivos de plano de uma EFPC para outra. O seu artigo 13 se limita a prever que a transferência dos ativos financeiros para a entidade de destino deve se dar pelo valor contábil.
O tema foi recentemente analisado pela Receita Federal do Brasil (“RFB”) sob outro viés. Ao examinar determinada transferência de gerenciamento, a RFB emitiu a Solução de Consulta no 193, publicada em 16.11.2018. No caso concreto, uma EFPC tinha sido autuada e estava discutindo débitos de PIS/COFINS em processos tributários administrativos em curso perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”). A EFPC transferiu o gerenciamento do seu plano para outra EFPC – sem qualquer evento societário atrelado – e consultou a RFB para confirmar se essa operação seria equiparada a uma operação societária passível de gerar sucessão para a EFPC de destino, nos termos do artigo 132 do Código Tributário Nacional (“CTN”).
A RFB analisou, nessa Solução de Consulta, a natureza jurídica da transferência de gerenciamento e concluiu que não seria aplicável o disposto no artigo 132, já que inexistente qualquer operação societária de fusão, transformação, cisão ou incorporação. No entanto, a RFB enquadrou a transferência de gerenciamento como aquisição de fundo de comércio, nos termos do artigo 133 do CTN.
No seu entendimento, e com base no histórico da legislação regulatória, a RFB apontou que cada plano de previdência teria autonomia patrimonial e assim contaria com uma espécie de patrimônio de afetação, isto é, com ativos totalmente segregados. Seguindo essa linha de raciocínio, a RFB ressaltou que o plano de previdência consistiria em uma universalidade de direito, ou melhor, um complexo patrimonial formado por bens, direitos e obrigações destinados a pagar benefícios futuros aos participantes. Nesse sentido, a RFB então destacou que o complexo patrimonial seria equiparado a um estabelecimento/fundo de comércio.
Assim sendo, a transferência do gerenciamento implicaria sucessão em razão de a nova EFPC “adquirir” esse fundo de comércio da antiga entidade. A RFB finalizou a análise da referida Solução ressaltando que a nova entidade seria responsável por todos os tributos relativos ao plano adquirido devidos até a data da transferência. A responsabilidade seria integral se a antiga entidade deixar a sua atividade, ou subsidiária, se continuar explorando a mesma atividade ou iniciar, em 6 meses, nova atividade no mesmo ou outro ramo.
A nosso ver, a RFB não considerou, contudo, que na hipótese tratada a transferência de gerenciamento não envolve qualquer espécie de “aquisição de fundo de comércio”, já que não se verifica operação onerosa, mas simples alteração da operadora do plano de benefícios. Além disso, é preciso ter em mente que o artigo 133 do CTN se reporta a eventos em que uma empresa realmente adquire parte relevante da atividade de outra. No caso, porém, a natureza da relação entre o patrocinador e a entidade é mais simples, sendo puramente contratual: a EFPC é quem opera o plano, isto é, realiza a sua gestão e administração.
Atribuir a sucessão tributária e previdenciária alegando aquisição de fundo de comércio é ainda um desestímulo às transferências de gerenciamento que, em última instância, pretendem buscar maior eficiência econômica na redução dos custos de administração. Na hipótese sob análise, não há qualquer evento societário, de modo que é o patrocinador quem busca a transferência do gerenciamento entre EFPC, justamente para tornar o plano mais eficiente para todos os participantes. Há, logo, mera substituição da empresa gestora do plano de benefício.
Note-se que a Solução de Consulta no 193 foi emitida pela Coordenação-Geral de Tributação (“COSIT”) e tem efeito vinculante, ou seja, deve ser aplicada obrigatoriamente por todos os Agentes Fiscais no âmbito da RFB.
Diante disso, além de observar a regulamentação detalhada do CNPC, atentando-se a todas as regras formais específicas envolvendo a transferência, as EFPC envolvidas precisam estar cientes do risco de o Fisco alegar sucessão e assim cobrar tributos e contribuições devidos pelo plano objeto de transferência, devendo se precaver contra eventuais tentativas de responsabilização.
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CRISTIANE I. MATSUMOTO GAGO – Sócia da Área Previdenciária de Pinheiro Neto Advogados
MARIANA MONTE ALEGRE DE PAIVA – Associada da área tributária de Pinheiro Neto Advogados
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