Passados mais de 26 anos a partir do advento da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, que instituiu a impenhorabilidade do bem de família, doutrina e jurisprudência continuam divergindo em alguns de seus aspectos. Um desses aspectos é a equivocada tese da impenhorabilidade do bem de família em execução fiscal. Examinemos essa questão mediante análise sistemática da lei de regência da matéria.
Dispõe o art. 1º da Lei nº 8.009/90:
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.
A primeira observação que se impõe é a de que não se trata de tornar impenhorável o bem de família por qualquer dívida, mas apenas aquela “contraída pelos cônjuges ou pelos pais e filhos que sejam proprietários”.
E aqui iremos dispensar, por desnecessário ao exame desta questão específica, a análise do outro requisito concernente à residência no imóvel protegido.
Pelas noções de direito civil verifica-se de imediato que “dívida contraída” resulta de um ato voluntário o que exclui a dívida decorrente de imposição legal ou de condenação judicial.
Dívida contratual configura obrigação ex voluntate, ao passo que dívida tributária constitui obrigação ex lege. Daí porque as palavras “fiscal” e “previdenciária” que expressam dívida de natureza tributária não devem ser interpretadas literalmente. Se é verdade que o exercício de uma atividade econômica é dependente da vontade de cada um, não menos verdade que em exercendo determinada atividade econômica há incidência de tributos, independentemente da vontade do agente econômico. Por isso, não é correto afirmar que alguém contraiu dívida tributária que surge da força impositiva da lei.
Logo, apenas a primeira dívida está sob proteção da lei específica, assim mesmo com as exceções previstas na lei.
Não bastasse a interpretação sistemática do art. 1º, o art. 3º da mesma lei ressalva expressamente a penhora do bem de família no caso de cobrança de tributos decorrentes do imóvel protegido, in verbis:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
….
IV – para cobrança de imposto, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
Logo, ainda que não fosse possível penhorar bem de família em execução fiscal, tese que se admite apenas ad argumentandum, essa impossibilidade não poderia ser generalizada em face da expressa ressalva contida no inciso IV, do art. 3º da lei de regência da matéria.
As exceções casuísticas do art. 3º pode até dificultar a correta interpretação do alcance e conteúdo do art. 1º, que é a regra geral da impenhorabilidade pelas “dívidas contraídas”.
Contudo, uma interpretação sistemática da lei à luz do princípio inserto no art. 5° da LINDB, examinando-se cada caso concreto de acordo com os aspectos sócio-econômicos, éticos e morais tudo restará aclarado, de sorte a preservar o escopo político-social relevante que teve em mira o legislador ao instituir a impenhorabilidade do bem de família.
Só para ilustrar, atenta contra os princípios éticos e morais e contraria o princípio da razoabilidade, que é um limite imposto à ação do próprio legislar, permitir a lei que o condenado por decisão judicial por ter provocado a destruição de imóvel de propriedade de outrem que lhe servia de residência venha alegar a impenhorabilidade quando executado para a cobrança da indenização a que fora condenado.
Uma eventual decisão que desse guarida ao executado nessa situação estaria se afastando do princípio geral de direito expresso no art. 5º da LINDB, que vincula a ação do juiz.
Fonte: Tributário.com.br
Autor: Kiyoshi Harada