Sumário
1 Introdução
2 Posicionamento inicial do STF em torno do conceito de serviço
3 Posicionamento da doutrina
4 Evolução da jurisprudência do STF
5 O exame do subitem 1.09 da lista de serviços
6 Conclusão
1 Introdução
Com o advento da Lei Complementar nº 157/16 novos serviços foram acrescidos à lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/03, notadamente, no campo da informática que não para de crescer com a invenção de meios cada vez mais sofisticados que vêm gerando movimentação de riquezas de grande monta.
A se manter uma postura estática da doutrina e da jurisprudência em torno do conceito do que seja “serviço” para fins de tributação pelo ISS, acabaremos caminhando para a ilegitimidade do sistema tributário municipal deixando de tributar as mais expressivas manifestações de riqueza que são os veículos naturais de incidência tributária.
2 Posicionamento inicial do STF em torno do conceito de serviço
Antes de adentrar no exame específico da tributação de streaming de vídeos e de áudios musicais trazida pela recente Lei Complementar nº 157/16 convém verificar como vinha o Supremo Tribunal Federal interpretando o sentido dos “serviços de qualquer natureza” referidos no art. 156, III da CF.
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
[…]
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II [1], definidos em lei complementar.
O STF fixou o entendimento inicial de que a expressão definidos em lei complementar tinha apenas a natureza taxativa dos serviços que podem ser tributados, isto é, que o legislador complementar deveria enumerar dentre os serviços de qualquer natureza aqueles que podem ser alcançados pela tributação municipal. A função da lei complementar era somente a de catalogar os serviços tributáveis à medida que fossem aparecendo novas manifestações de prestação de serviços. Não podia a lei complementar criar conceito autônomo de serviço porque a Constituição teria adotado a conceituação tradicional de serviço ditado pelo direito civil. Haveria, desta forma, um conceito constitucional de serviço, como acontece em relação à renda, objeto de tributação pelo imposto de renda, consoante parcela ponderável da opinião da doutrina e da jurisprudência.
A existência do conceito constitucional de serviço foi deduzida pelas dicções dos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional, in verbis:
Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos.
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Partiu-se do pressuposto de que o conceito de serviços utilizado para definir a competência tributária municipal (art. 110 do CTN) é vinculante dentro do direito tributário. Quanto ao art. 109 do CTN, a sua parte final, na verdade, permite à lei tributária conferir efeitos diversos, ainda que respeitando o conteúdo e alcance dos institutos de direito privado.
Daí o Acórdão paradigma do STF expresso na ementa abaixo transcrita:
TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional (RE nº 116121, Relator Min. Octavio Gallotti, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Marco Aurélio, julgado em 11-10-2000, DJ de 25-05-2001).
Utilizou-se da classificação das obrigações de direito civil em obrigações de dar e obrigações de fazer e não fazer para caracterizar a incidência do ICMS no primeiro caso, e a incidência do ISS no segundo caso. Tanto é que ficou consignado do corpo do Acórdão o seguinte:
Cabe advertir, neste ponto, que a locação de bens móveis não se identifica e nem se qualifica, para efeitos constitucionais, como serviço, pois esse negócio jurídico – considerados os elementos essenciais que lhe compõem a estrutura material – não envolve a prática de atos que consubstanciam um praestare ou um facer.
Outros Acórdãos seguiram o mesmo raciocínio como aquele que condenou a inclusão da locação de guindastes aonde não há uma prestação de fazer, isto é, um esforço humano dirigido à produção de um bem imaterial.
Por fim, colocando uma pá de cal sobre as discussões da espécie, pelo menos, por um certo tempo, foi editada a Súmula vinculante nº 31 com o seguinte enunciado:
É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.
É importante verificar que a proposta de Súmula Vinculante que partiu do Ministro Joaquim Barbosa, conforme se depreende dos debates havidos na redação da citada Súmula, tinha a seguinte redação:
É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveisdissociadas da prestação de serviços.
Mas, a expressão final foi suprimida porque no julgamento que ensejou a formalização do leading case não houve debates em torno da associação da locação de bens móveis com serviços, como ponderou o Ministro Marco Aurélio.
Na verdade, essa associação entre locação e prestação de serviço era de vital importância para distinguir locação pura daquela locação seguida de prestação de serviço. No caso de guindaste, por exemplo, se locado pura e simplesmente o equipamento para o locatário, a toda evidência, não há prestação de serviço, como corretamente decidido pela Corte Suprema. Mas, se a locação envolver o fornecimento de um técnico para operar a máquina locada haverá prestação efetiva do serviço especializado, que não pode ser executado por um simples locatário, sem qualificação técnica, sob pena da causar desastres de consequências imprevisíveis.
3 Posicionamento da doutrina
A doutrina acompanhou o entendimento da jurisprudência traduzida naquele Acórdão paradigma sustentando, à quase unanimidade, que o ISS só pode alcançar prestações que envolver uma obrigação de fazer, reservando-se as obrigações de dar para a incidência do ICMS/IPI. Nós, também, aderimos a esse posicionamento quando afirmarmos:
É a partir das distinções entre obrigações de dar e de fazer que identificamos as hipóteses de incidência do ISS, do ICMS e do IPI. Conforme escrevemos:
a) o ISS só pode incidir sobre prestação de serviço, assim entendido o produto de esforço humano que se apresenta sob forma de bem imaterial, ou no caso de implicar utilização de material preserve a sua natureza no sentido de expressar uma obrigação de fazer, isto é, ter como objeto da prestação a própria atividade;
b) o ICMS incide sobre circulação de bens corpóreos e incorpóreos, mas que expressa uma obrigação de dar, cujo objeto da prestação é uma coisa ou direito, algo já existente;
c) o IPI, apesar de a industrialização envolver um ‘fazer’, só pode ter por fundamento uma obrigação de dar, porque, por expressa definição, é um imposto que incide sobre venda, importação ou arrematação de produto industrializado [2].
4 Evolução da jurisprudência do STF
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, a exemplo de outros temas relevantes, reformulou esse entendimento sumulado aprimorando a sua jurisprudência. Os primeiros sinais de afastamento de seu posicionamento inicial aconteceu com o julgamento de um caso envolvendo o leasing financeiro onde, a rigor, não há uma obrigação de fazer. A busca do bem encomendado pelo tomador, a consulta às instâncias administrativas do estabelecimento financiador etc. são atividades-meios para alcançar a atividade-fim que consiste na entrega do objeto encomendado, nos termos do contrato de leasing.
Segue ementa abaixo para melhor exame:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. OPERAÇÃO DE LEASING FINANCEIRO. ARTIGO 156, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O arrendamento mercantil compreende três modalidades, [i] o leasing operacional, [ii] o leasing financeiro e [iii] o chamado lease-back. No primeiro caso há locação, nos outros dois, serviço. A lei complementar não define o que é serviço, apenas o declara, para os fins do inciso III do artigo 156 da Constituição. Não o inventa, simplesmente descobre o que é serviço para os efeitos do inciso III do artigo 156 da Constituição. No arrendamento mercantil (leasing financeiro), contrato autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não uma prestação de dar. E financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir, resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing financeiro e do lease-back. Recurso extraordinário a que se dá provimento (RE nº 547245, Relator Min. Eros Grau, DJe de 05-03-2010).
Finalmente, em recente julgado proferido em sede de repercussão geral o STF reverteu definitivamente o seu entendimento inicial ao reconhecer a autonomia do Direito Tributário para definir os serviços que podem ser tributados pelo ISS, não ficando subordinado ao primado do Direito Privado, conforme se depreende da ementa abaixo:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISSQN. ART. 156, III, CRFB/88. CONCEITO CONSTITUCIONAL DE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA. ARTIGOS 109 E 110 DO CTN. AS OPERADORAS DE PLANOS PRIVADOS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE (PLANO DE SAÚDE E SEGURO-SAÚDE) REALIZAM PRESTAÇÃO DE SERVIÇO SUJEITA AO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA-ISSQN, PREVISTO NO ART. 156, III, DA CRFB/88. 1. O ISSQN incide nas atividades realizadas pelas Operadoras de Planos Privados de Assistência à Saúde (Plano de Saúde e Seguro-Saúde). 2. A coexistência de conceitos jurídicos e extrajurídicos passíveis de recondução a um mesmo termo ou expressão, onde se requer a definição de qual conceito prevalece, se o jurídico ou o extrajurídico, impõe não deva ser excluída, a priori, a possibilidade de o Direito Tributário ter conceitos implícitos próprios ou mesmo fazer remissão, de forma tácita, a conceitos diversos daqueles constantes na legislação infraconstitucional, mormente quando se trata de interpretação do texto constitucional. 3. O Direito Constitucional Tributário adota conceitos próprios, razão pela qual não há um primado do Direito Privado. 4. O art. 110, do CTN, não veicula norma de interpretação constitucional, posto inadmissível interpretação autêntica da Constituição encartada com exclusividade pelo legislador infraconstitucional. 5. O conceito de prestação de ‘serviços de qualquer natureza’ e seu alcance no texto constitucional não é condicionado de forma imutável pela legislação ordinária, tanto mais que, de outra forma, seria necessário concluir pela possibilidade de estabilização com força constitucional da legislação infraconstitucional, de modo a gerar confusão entre os planos normativos. 6. O texto constitucional ao empregar o signo ‘serviço’, que, a priori, conota um conceito específico na legislação infraconstitucional, não inibe a exegese constitucional que conjura o conceito de Direito Privado. 7. A exegese da Constituição configura a limitação hermenêutica dos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional, por isso que, ainda que a contraposição entre obrigações de dar e de fazer, para fins de dirimir o conflito de competência entre o ISS e o ICMS, seja utilizada no âmbito do Direito Tributário, à luz do que dispõem os artigos 109 e 110, do CTN, novos critérios de interpretação têm progressivamente ampliado o seu espaço, permitindo uma releitura do papel conferido aos supracitados dispositivos. 8. A doutrina do tema, ao analisar os artigos 109 e 110, aponta que o CTN, que tem status de lei complementar, não pode estabelecer normas sobre a interpretação da Constituição, sob pena de restar vulnerado o princípio da sua supremacia constitucional. 9. A Constituição posto carente de conceitos verdadeiramente constitucionais, admite a fórmula diversa da interpretação da Constituição conforme a lei, o que significa que os conceitos constitucionais não são necessariamente aqueles assimilados na lei ordinária. 10. A Constituição Tributária deve ser interpretada de acordo com o pluralismo metodológico, abrindo-se para a interpretação segundo variados métodos, que vão desde o literal até o sistemático e teleológico, sendo certo que os conceitos constitucionais tributários não são fechados e unívocos, devendo-se recorrer também aos aportes de ciências afins para a sua interpretação, como a Ciência das Finanças, Economia e Contabilidade. 11. A interpretação isolada do art. 110, do CTN, conduz à prevalência do método literal, dando aos conceitos de Direito Privado a primazia hermenêutica na ordem jurídica, o que resta inconcebível. Consequentemente, deve-se promover a interpretação conjugada dos artigos 109 e 110, do CTN, avultando o método sistemático quando estiverem em jogo institutos e conceitos utilizados pela Constituição, e, de outro, o método teleológico quando não haja a constitucionalização dos conceitos. 12. A unidade do ordenamento jurídico é conferida pela própria Constituição, por interpretação sistemática e axiológica, entre outros valores e princípios relevantes do ordenamento jurídico. 13. Os tributos sobre o consumo, ou tributos sobre o valor agregado, de que são exemplos o ISSQN e o ICMS, assimilam considerações econômicas, porquanto baseados em conceitos elaborados pelo próprio Direito Tributário ou em conceitos tecnológicos, caracterizados por grande fluidez e mutação quanto à sua natureza jurídica. 14. O critério econômico não se confunde com a vetusta teoria da interpretação econômica do fato gerador, consagrada no Código Tributário Alemão de 1919, rechaçada pela doutrina e jurisprudência, mas antes em reconhecimento da interação entre o Direito e a Economia, em substituição ao formalismo jurídico, a permitir a incidência do Princípio da Capacidade Contributiva. 15. A classificação das obrigações em ‘obrigação de dar’, de ‘fazer’ e ‘não fazer’, tem cunho eminentemente civilista, como se observa das disposições no Título ‘Das Modalidades das Obrigações’, no Código Civil de 2002 (que seguiu a classificação do Código Civil de 1916), em: (i) obrigação de dar (coisa certa ou incerta) (arts. 233 a 246, CC); (ii) obrigação de fazer (arts. 247 a 249, CC); e (iii) obrigação de não fazer (arts. 250 e 251, CC), não é a mais apropriada para o enquadramento dos produtos e serviços resultantes da atividade econômica, pelo que deve ser apreciada cum grano salis. 16. A Suprema Corte, ao permitir a incidência do ISSQN nas operações de leasing financeiro e leaseback (RREE 547.245 e 592.205), admitiu uma interpretação mais ampla do texto constitucional quanto ao conceito de ‘serviços’ desvinculado do conceito de ‘obrigação de fazer’ (RE 116.121), verbis: ‘EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. ISS. ARRENDAMENTO MERCANTIL. OPERAÇÃO DE LEASING FINANCEIRO. ARTIGO 156, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O arrendamento mercantil compreende três modalidades, [i] o leasing operacional, [ii] o leasing financeiro e [iii] o chamado leaseback. No primeiro caso há locação, nos outros dois, serviço. A lei complementar não define o que é serviço, apenas o declara, para os fins do inciso III do artigo 156 da Constituição. Não o inventa, simplesmente descobre o que é serviço para os efeitos do inciso III do artigo 156 da Constituição. No arrendamento mercantil (leasing financeiro), contrato autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não uma prestação de dar. E financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir, resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasingfinanceiro e do leaseback. Recurso extraordinário a que se nega provimento.’ (grifo nosso)(RE 592905, Relator Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2009). 17. A lei complementar a que se refere o art. 156, III, da CRFB/88, ao definir os serviços de qualquer natureza a serem tributados pelo ISS a) arrola serviços por natureza; b) inclui serviços que, não exprimindo a natureza de outro tipo de atividade, passam à categoria de serviços, para fim de incidência do tributo, por força de lei, visto que, se assim não considerados, restariam incólumes a qualquer tributo; e c) em caso de operações mistas, afirma a prevalência do serviço, para fim de tributação pelo ISS. 18. O artigo 156, III, da CRFB/88, ao referir-se a serviços de qualquer natureza não os adstringiu às típicas obrigações de fazer, já que raciocínio adverso conduziria à afirmação de que haveria serviço apenas nas prestações de fazer, nos termos do que define o Direito Privado, o que contrasta com a maior amplitude semântica do termo adotado pela constituição, a qual inevitavelmente leva à ampliação da competência tributária na incidência do ISSQN. 19. A regra do art. 146, III, ‘a’, combinado com o art. 146, I, CRFB/88, remete à lei complementar a função de definir o conceito “de serviços de qualquer natureza”, o que é efetuado pela LC nº 116/2003. 20. A classificação (obrigação de dar e obrigação de fazer) escapa à ratio que o legislador constitucional pretendeu alcançar, ao elencar os serviços no texto constitucional tributáveis pelos impostos (v.g., serviços de comunicação – tributáveis pelo ICMS, art. 155, II, CRFB/88; serviços financeiros e securitários – tributáveis pelo IOF, art. 153, V, CRFB/88; e, residualmente, os demais serviços de qualquer natureza – tributáveis pelo ISSQN, art. 156. III, CRFB/88), qual seja, a de captar todas as atividades empresariais cujos produtos fossem serviços sujeitos a remuneração no mercado. 21. Sob este ângulo, o conceito de prestação de serviços não tem por premissa a configuração dada pelo Direito Civil, mas relacionado ao oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro, podendo estar conjugada ou não com a entrega de bens ao tomador. 22. A LC nº 116/2003 imbricada ao thema decidendum traz consigo lista anexa que estabelece os serviços tributáveis pelo ISSQN, dentre eles, o objeto da presente ação, que se encontra nos itens 4.22 e 4.23, verbis: ‘Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. (…) 4.22 – Planos de medicina de grupo ou individual e convênios para prestação de assistência médica, hospitalar, odontológica e congêneres. 4.23 – Outros planos de saúde que se cumpram através de serviços de terceiros contratados, credenciados, cooperados ou apenas pagos pelo operador do plano mediante indicação do beneficiário.’ 23. A exegese histórica revela que a legislação pretérita (Decreto-Lei nº 406/68) que estabelecia as normas gerais aplicáveis aos impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre serviços de qualquer natureza já trazia regulamentação sobre o tema, com o escopo de alcançar estas atividades. 24. A LC nº 116/2003 teve por objetivo ampliar o campo de incidência do ISSQN, principalmente no sentido de adaptar a sua anexa lista de serviços à realidade atual, relacionando numerosas atividades que não constavam dos atos legais antecedentes. 25. A base de cálculo do ISSQN incidente tão somente sobre a comissão, vale dizer: a receita auferida sobre a diferença entre o valor recebido pelo contratante e o que é repassado para os terceiros prestadores dos serviços, conforme assentado em sede jurisprudencial. 27. Ex positis, em sede de Repercussão Geral a tese jurídica assentada é: ‘As operadoras de planos de saúde e de seguro-saúde realizam prestação de serviço sujeita ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, previsto no art. 156, III, da CRFB/88′. 28. Recurso extraordinário DESPROVIDO’ (RE nº 651703, Relator Min. Luiz Fux, DJe de 26-04-2017).
Depreende-se desse V. Acórdão que a Corte Suprema deu nova interpretação ao inciso III, do art. 156 da CF para afastar o entendimento de que a Carta Política encampou o conceito de serviço ditado pelo Direito Privado, para concluir que o legislador constituinte original cometeu à lei complementar a tarefa de definir o serviço que pode ser tributado pelo imposto municipal, e não simplesmente elencar ou catalogar os serviços, como tais considerados pelo direito civil.
Lembro-me da lição do saudoso Geraldo Ataliba que se rebelava contra a enumeração de uma lista de serviços restringindo o alcance do conceito constitucional do serviço de qualquer natureza. Para ele a lista só poderia ter caráter exemplificativo.
Na ótica atual, a expressão “definidos em lei complementar” que consta do inciso III, do art. 156 da CF significa autorização constitucional para o legislador nacional definir e dizer quais são os serviços de qualquer natureza alcançáveis pelo ISS. Embora mantendo o caráter taxativo da lista de serviços, o legislador complementar pode imprimir dinamismo a essa lista à medida que novos signos presuntivos de riqueza venham se apresentar no mundo fático em termos de prestação de serviços. A taxatividade assim considerada vai de encontro ao princípio da segurança jurídica, ao mesmo tempo em que uniformiza o nível de imposição tributária pelos diferentes municípios e concorre para prevenir as guerras fiscais, sem ficar atrelado ao conceito de serviço ditado pelo Direito Privado.
5 O exame do subitem 1.09 da lista de serviços
A Lei Complementar nº 157/16 veio acrescentar vários subitens de serviços tributáveis pelo ISS dentre eles o de nº 1.09 nos seguintes termos:
1.09 – Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei nº 12.485 de 12/09/2011, sujeita ao ICMS).
Esse novo subitem passou a permitir a tributação do ISS sobre a disponibilização, sem cessão definitiva, por meio da Internet dos conteúdos de áudio, vídeo, imagens e textos, sem que haja cessão definitiva de direitos autorais. Respeitou-se, como não poderia deixar de ser, a imunidade objetiva do livro, jornais e periódicos. Outrossim, inseriu-se a expressão entre parênteses para excluir a distribuição de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto que configuram Serviços de Valor Adicionado – SVA – de competência impositiva dos Estados por meio do ICMS, conforme entendimento consolidado na jurisprudência do STJ.
Como se verifica do texto transcrito não se trata de cessão definitiva, mas temporária, isto é, enquanto perdurar o contrato firmado com o prestador de serviços. Interrompido o contrato, cessa-se a disponibilização dos conteúdos referidos, circunstância que, por si só, retira o caráter de obrigação de dar, por sinal irrelevante juridicamente para definir a competência impositiva municipal conforme verificamos.
O novo subitem tributa, pois, o streaming de vídeos e de áudios musicais alcançando, por exemplo os serviços prestados pelo Netflix e pelo Spotify.
Logo surgiram opiniões de respeitáveis autores posicionando-se contra essa tributação que acoimam de inconstitucional, abrigando-se no enunciado da Súmula Vinculante de nº 31 que veda a tributação de locação de bem móvel que não pode ser caracterizada como um esforço humano aplicado à produção de bem imaterial externando uma obrigação de fazer. Como assinalamos, obrigação de dar também não está caracterizada, pois o serviço é prestado somente enquanto o contratante estiver pagando a mensalidade ao contratado. Interrompido o pagamento das mensalidades suspende-se, ipso facto, a disponibilização de imagens e sons. Daí a cessão não definitiva dos conteúdos de áudio, vídeo, imagens e textos na dicção do subitem 1.09 sob exame.
Indiferente, outrossim, a invocação da tese de que estamos diante da cessão de direitos que configura uma obrigação de dar. Sob esse ângulo já sustentamos a tributação pelo ISS da cessão de direito de uso de marcas e de sinais de propaganda prevista no subitem 3.02 da lista de serviços:
A cessão objetivada pelo ISS diz respeito ao direito de uso de marcas e de sinais de propaganda, isto é, venda de serviços na produção intelectual de marcas e de sinais de propaganda. Há nesse tipo de cessão circulação de bem imaterial. Com a cessão, o cessionário (tomador do serviço) adquire não o domínio do suporte físico da marca ou do sinal, mas o domínio da obra intelectual do cedente (prestador de serviço), de sorte a ficar assegurado o uso exclusivo da marca ou sinal de propaganda [3].
De fato, com a cessão, o tomador passa a usufruir efetivamente da marca ou do sinal de propaganda.
O subitem 1.09 da lista de serviços deve ser interpretado à luz da jurisprudência atual do STF que se libertou das amarras do Direito Privado. É fora de dúvida que houve alteração de entendimento do STF que detém a prerrogativa de dizer a última palavra em termos de constitucionalidade ou não das normas.
E esse último posicionamento do Excelso Pretório Nacional é o que mais se ajusta à dicção do inciso III, do art. 156 da CF que não está se referindo ao serviço como forma de fixar ou inibir a competência impositiva municipal, como ocorre em outras passagens, como as do art. 155, I (transmissão causa mortis e doação de qualquer bens ou direito; do art. 156, II (bens imóveis, por natureza ou acessão física, direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia). Nessas hipótese não cabe ao Direito Tributário definir diferentemente o significado da transmissão causa mortis, da doação, dos bens imóveis, dos direitos reais sobre imóveis, nem sobre os direitos reais de garantia, ficando vinculado o legislador tributário aos conceitos ditados pelo Direito Privado, sob pena de quebrar a unidade político-juridica nacional. No caso do inciso III, do at. 156 é bem diferente. É o próprio texto constitucional que está incumbindo a lei complementar de definir quais são os serviços de qualquer natureza a serem tributados pelo município, harmonizando-se perfeitamente com o disposto no art. 146, III, a da CF.
6 Conclusão
O subitem 1.09 da lista de serviços introduzido pela Lei Complementar não padece de qualquer vício de natureza constitucional. O precedente jurisprudencial do STF que subordinava a tributação do serviço pelo ISS à obrigação de fazer foi suplantado pela própria Corte Suprema.
Dessa forma, o enunciado da Súmula Vinculante nº 31 deve ser lido de forma atualizada, conferindo-lhe o sentido emprestado pelo Ministro Joaquim Barbosa que propunha a seguinte redação:
É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis dissociadas da prestação de serviços.
[1] Serviços de transportes interestadual e intermunicipal e de comunicação.
[2]ISS doutrina e prática. São Paulo: Atlas, 2008, p. 39.
[3] ISS doutrina e prática, 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 141.
Para citar em formato ABNT:
HARADA, Kiyoshi. ISS. Novo conceito de serviço a partir da reinterpretação do texto constitucional. Tributário: Revista Digital, Volume 18, Número 43, outubro de 2017. [on-line]. São Paulo: Tributário, outubro 2017. Disponível em:<https://tributario.com.br/harada/iss-novo-conceito-de-servico-partir-da-reinterpretacao-do-texto-constitucional/> ISSN 1676-4404
Por Kiyoshi Harada
Fonte: tributario.com.br