Juízos recuperacionais do nosso país têm construído tendência cada vez mais acentuada de aplicar como absolutas as normas falimentares sobre as empresas em crise, em detrimento à observância do Direito Societário, que rege tais empresas desde seus respectivos nascimentos até o encerramento de suas atividades.
Nesses nossos tempos de crise nacional, é tido como normal assumir a premissa de que, na ponderação entre os microssistemas recuperacional e societário, predomina e prepondera o interesse – público? – atrelado à superação da crise econômica da empresa, pondo de escanteio os direitos de acionistas assegurados expressamente pela Lei das Sociedades por Ações.
Em recuperações judiciais de companhias abertas – cada vez mais comuns – atropelam-se diversas prerrogativas legais e infralegais (advindas das inúmeras Instruções da CVM) de acionistas minoritários, variando desde o cerceamento ao acesso à informação até direitos de participar em ofertas, aumentos de capital ou ter voz ativa na elaboração do plano de recuperação (ao menos nas partes destes que dispõem sobre a supressão de direitos que lhes são garantidos por lei).
Nas incontáveis outras recuperações judiciais, a preocupação não deve ser menor. Companhias fechadas parecem ser sequestradas pelo juiz recuperacional, que concede poder quase ilimitado para os participantes do procedimento ignorarem garantias de governança corporativa, estrutura organizacional, direitos de acionistas e matrizes de responsabilidades, obrigações e atribuições de seus controladores ou administradores, todos estes anteriormente salvaguardados pela Lei Societária.
Muito preocupa, também, a constatação de que, esvaziando-se os direitos assegurados por lei, imagine-se o que ocorre com os direitos assegurados por acordos societários. Desde o Caso Daslu, já em 2012, nota-se a postura dos julgadores de ignorarem direitos expressamente previstos em acordos de acionistas, em prol da melhor transcorrência do procedimento recuperacional.
Naquele caso, chega-se a determinar que direitos de acionistas minoritários não podem prevalecer sobre os direitos dos credores da recuperanda e que estas “querelas intrassocietárias” devem ser dirimidas no palco judicial adequado, não na recuperação judicial, esta que, segundo o magistrado, “abrange objetivos que pairam acima daqueles titularizados pelos sócios minoritários, majoritários ou controladores”.
Parece que o pacta sunt servanda, mesmo quando em relação a pactos parassociais típicos, previstos em lei e – ao menos em tese – que ensejam execução específica de seus termos e condições, perdem no certame contra a Lei Falimentar. Mais: parece que não só os pactos, mas, para o Poder Judiciário, o direito societário como um todo, queda-se abaixo do direito falimentar, que “paira acima” dos direitos tutelados por aquele.
Esse tipo de aplicação unilateral e partidária do direito, sem a acomodação correta das normas do nosso ordenamento jurídico, acaba por criar inúmeros conflitos, que, judicializados, geram custos, financeiros e temporais, para todos os envolvidos.
Os embates entre microssistemas geram a necessidade dos agentes contextualizarem a aplicação destas fontes diversas (e, no mais das vezes, divergentes). A hermenêutica e sua subsequente subsunção requer uma análise sistêmica, pois, a ordem jurídica, apesar de se capilarizar por estas áreas de concentração que parecem autônomas, individuais e independentes, na verdade, precisam dirimir questões do mundo fático, que não tem linhas de campo claramente traçadas. Pelo contrário, no mundo real há muito mais zona de penumbra do que núcleo duro.
É evidente que o campo societário não espera que seus ditames permaneçam absolutos. Situações emergenciais, de crise empresarial, requerem a relativização dos normativos societários, para acomodar os princípios e os bens jurídicos tutelados pelo microssistema competente para gerir juridicamente a então recuperanda.
No entanto, o campo recuperacional e seus agentes precisam compreender que seus ditames tampouco são absolutos e que existem direitos, deveres, obrigações e responsabilidades para além da administração da crise, que devem ser respeitados, pois, além da crise, há a empresa, e, além da empresa, há seus diretores, conselheiros, acionistas minoritários e acionistas controladores.
Não se advoga pela troca da altura de cruzeiro de cada área jurídica. Advoga-se pelo fim do esmagamento de uma área por outra. Advoga-se pelo fim do argumento de que é aceitável jogar todos os demais regramentos pela janela quando se adentra a recuperação judicial. Advoga-se, por fim, pela conciliação em casos de conflito normativo e que estes dois diplomas sejam aplicados de maneira a conviver, na máxima extensão possível, harmonicamente.
Nem o direito nem o mundo são dicotômicos, portanto, a aplicação de um noutro também não deveria ser.
Por Ivo Bari
Fonte: JOTA